segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Poesia: Não desfazia (Não, disfasia!)

Tenho o veneno intermitente da perífrase em minhas veias
É maldição que me cala, tiro que resvala em meu coração
Não a realizo como um fruto amargo, mal cinza, de problema físico
Não a identifico como motivo maior de minha cisma, nem como
filha pernalta da Psiquê sem norte
Norte este que nunca topou comigo, ou, se já o fizera, não tomei tento

Ah! moça rude! Comunicação lassa, vens de onde!?
Qual teu nome, cobra viperina!? Oh! Só me maltratas
Tens-me escondido por detrás desta farsa, carregado poema imundo
Confunde-te com a fala, mas clareia esta sala escura...
Vê! Quero a mais fluorescente das idéias e que esta
visite-me semanalmente...
Não estimo esta comunicação oca, brinquedo industrializado
de seus vizinhos paraguaios! Sério, não são meus... Não sou telúrico...

Sou deveras mudo, uma inconseqüentemente conseqüente mente
nata da profusão de minha latente disfasia: é fala em fúria!
Sou, antes de tudo, um amante de minha mucosa bucal,
esta que, néscio devorada por efeito de quilofagia, pede socorro...
Comunico-me torpe comigo mesmo, e, aqui, a poesia acalma-se
Mudo de letra, este reflexo do momento em que vivo...
Acabou! Ah! Vou, agora, voltar ao que fazia, desfazia, disfasia...

(Por Gustavo Henrique S. A. Luna)

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Crônica: A crônica sem assunto.

Enfim, escrevo-o, um texto mal programado. Teria de começá-lo às seis, mas a enfadonha espera por conectar-me à internet não me permitiu. Ora, para não cair em ócio, tomei algumas crônicas de autores vários para breve releitura. Esperei contemplar um pouco mais da fluência dos textos de Drummond, Duílio Gomes, Sabino, Rubem Braga e alguns outros; mas deu-se a intempestiva conexão, uma pausa que, para mim, representou um pouco de alívio (enfim não perderia mais um minuto sequer para começar este texto) e desapontamento, por interromper-me as lembranças de crônicas antigas. A sistematização de minha composição tem-me exaurido a criatividade, e procuro, pois, agora, retirar assunto das coisas supérfluas de um domingo rotineiro. A família parou há pouco para assistir ao jogo da seleção brasileira de futebol contra a da Colômbia, e cá estou tentando lembrar-me de mais alguma ocorrência trivial. É certo que hoje acordei um tanto disposto à escrita, mas a sistematização das coisas impede-me a naturalidade; fico até receoso de tornar-me o texto artificial deveras e por definitivo.

O cotidiano ajudou-me um pouco, mas a recorrência ao fictício ainda compõe majoritariamente os meus textos; salvos a esse ataque do ilusório estão os meus desabafos, como este que ainda é um tanto incerto e sem rumo. Quando paro para discutir essa metalinguagem da composição, não minto: é falta de assunto mesmo! Pensei em mil coisas durante a semana, e, prestes a começá-lo e antes das crônicas lidas, tomei um dos livros de redação para procurar uma boa proposta que não fosse dissertativa, talvez uma narrativa, crônica ou qualquer outra, que todas me convêm; pois, assim como muitos dos meus colegas de aulas, estou farto da freqüência com que escrevo dissertações. Ah! Mas boas crônicas, como muitos ratificam, exigem muita vivência, o que ainda não possuo. Ainda espero quem defina realmente uma crônica, pois é dito por grandes nomes como a modalidade residente entre o conto e a poesia, e há ainda, segundo outros, vertentes várias desse tipo que vão da subjetividade do autor à narração semiplástica das coisas, mas que deveras mostra a despreocupação com o rigoroso fenotexto (assim afirmou o próprio Drummond: "... mas a crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao falar de tudo."). É realmente o que é sempre dito sobre a crônica, a mais libertina filha do jornal: "Se a notícia deve ser sempre objetiva e impessoal, a crônica é subjetiva e pessoal. Se a linguagem jornalística deve ser precisa e enxuta, a crônica é impressionista e lírica...". Nesta vacância de assunto, escuto, neste exato momento, o alarde das crianças correndo na rua e o atordoante latido de meu cachorro por motivo de toda a algazarra. É ferro ter de escrever com tanto barulho! [risos]. Situação irritante e semelhante a esta motivou-me a compor, na última sexta-feira, um poema horrível que ainda está sem título; foi a busca do mais legítimo nonsense em intervalo de dez leveiros minutos de escrita. Quando o leio, torno a rir de toda a sua falta de sentido (é a proposta, claro). Aprecio veementemente quem se vale da composição frívola, a mais transparente comunicação com o leitor. O texto preso ao paletó-e-gravata, como já dissera Drummond, não vale sequer a menor intimidade de quem escreve para com quem o lê; certamente é, e ainda ratifico: é o fruto podre da mais sistemática e artificialmente artificial mente. Comecei este texto com a mais clara intenção de tomar semelhante rumo (as linhas artificiais), mas percebo que, já em suas linhas finais, ele me transformou um pouco da concepção criativa.

(Por Gustavo Henrique S. A. Luna)

domingo, 14 de outubro de 2007

Poesia: Zé Limeira

"Escrotidão" poética, pornografia versada, distorções históricas poético-delirantes e prenhes de pseudo-nonsense, métrica ilibada, voz trovejante de bardo nordestino, anéis por todos os dedos, poesia pra todos os lados. Seus trajes aberrantes, sua viola, seu matulão pendurado. Esse aí não é ninguém não, é Zé Limeira, o mais mitológico dentre todos os repentistas surgidos no Brasil. Tem gente que até hoje acha que ele nunca existiu. “Vai ver foi um personagem criado pela cabeça fantasiosa de outros repentistas”, diriam os incautos.

O compêndio poético de sua obra só chegou ao conhecimento das novas gerações graças ao abnegado trabalho de pesquisa realizado pelo advogado e escritor Orlando Tejo, que resultou no livro "Zé Limeira, poeta do absurdo". Os dois se conheceram em 1950 e o encontro entre narrador e narrado é assim descrito pelo primeiro: “Foi numa nublada tarde de sábado que ouvi pela primeira vez José Limeira. Cantava em sombrio casarão da Rua Manuel Pereira de Araújo, movimentado centro do baixo meretrício, em Campina Grande. Chamou-me a atenção a dimensão do óculo (sic) exageradamente escuro que, havia 20 anos, inspirara este espirituoso repente de Severino Pinto:

Nestes dias vou fazer/ Como o nosso Zé Limeira:/ Comprar uns óculos escuros

Desses de tolda de feira/ Botar o bicho na cara,/ Sair cantando besteira"

Alcunhado de poeta do absurdo pelas suas construções poéticas verborrágicas e pelos neologismos mais esdrúxulos como pilogamia, filanlumia e filosomia, este paraibano de Teixeira cultivou um surrealismo assertanejado e altamente psicodélico, como confirmam estes versos:

Casemo no ano de 15
Na seca de 23
A mulher era donzela
Viúva de sete mês
Mais não me alembro que tenha
Um dia ficado prenha,/
Estado de gravidez.

Para obter mais informações sobre Zé Limeira, visita esta página: http://www.facom.ufba.br/pexsites/musicanordestina/limeira.htm

Algumas de suas poesias:

Sem título

O meu nome é Zé Limeira
De Lima, Limão , Limansa
As estradas de São Bento
Bezerro de Vaca Mansa
Vala-me, Nossa Senhora
Ai que eu me lembrei agora:
Tão bombardeando a França

Ninguém faça pontaria
Onde o chumbo não alcança
E vou comprá quatro livro
Prá estudá leiturança
Bem que meu pai me dizia:
Jesus , José e Maria,
São João das Orelha mansa

Ainda não tinha visto
Beleza que nem a sua,
De cipó se faz balaio
A beleza continua
Sete-Estrelo, três Maria
Mãe do mato pai da lua

A beleza continua
De cipó se faz balaio
Padre-Nosso, Ave-Maria,
Me pegue senão eu caio
Tá desgraçado o vivente
Que não reza o mês de maio

Sei quando Jesus nasceu,
Num dia de quinta-feira,
Eu fui uma testemunha
Sentado na cabeceira
São José chegou com um facho
De miolo de aroeira

Um dia o Reis Salamão
Dormiu de noite e de dia,
Convidou Napoleão
Pra cantá pilogamia
Viva a Princesa Isabé
Que já morô em Sumé
No tempo da monarquia

Zé Limeira quando canta
Estremece o Cariri
As estrêla trinca os dente
Leão chupa abacaxi
Com trinta dias depois
Estoura a guerra civí

Eu só gosto dessa moça
Porque tem vegetação
Porteira de pau a pique
Três pneus de caminhão
Peido de jumenta ruça
E haja chuva no sertão.

Foi quando Tomé de Souza
Desembarcou na Bahia
Logo no primeiro dia
Passou o pau na esposa
Ligeiro que nem raposa
Comeu na frente e atrás
Depois, na beira do cais
Por onde os navio trafega
Comeu o Padre Nóbrega
Que os anos não trazem mais.

Eu me chamo Zé Limeira,
Cantador que tem ciúme,
Brisa que sopra da Serra,
Fera que chegar do cume,
Brigada só de peixeira,
Mijo de moça solteira
Faca de primeiro gume!

Se tu for na minha casa
Tem capim pro teu cavalo,
Se chegar um filosofo
Eu mando fotografá-lo
Se chegar um fotografo
Eu mando filosofá-lo!

Eu me chamo Zé Limeira
Nascido lá no Tauá
Entre casca de Angico
Miolo de Jatobá
Bico de pato vadio
Picilone, za zá!

Mote: Diz o novo testamento

Minha muié chama Bela
Quando eu vou chegando em casa
O galo canta na brasa,
Cai o texto da panela
Eu fico olhando para ela
Cheio de contentamento
O satanaz num jumento
Pra mordê a Mãe de Deus
Não mordeu ela nem eus
Diz o novo testamento

Eu vi uma gavetinha
Da casa de João Moisés
Mais de cem contos de réis
Só de ovo de galinha
Ela comeu uma tinha
Da carcassa de um jumento
Que bicho má, peçonhento
Lacrau e piôi de cobra
Não pode mais fazer obra,
Diz o novo testamento

Jesus nasceu em Belém,
Conseguiu sair dalí
Passou por Tamataí
Por Guarabira também
Nessa viagem de trem

Foi pará no Entroncamento
Não encontrando aposento
Dormiu na casa do cabo
Jantou cuscus com quiabo
Diz o novo testamento

A Antítese do Sinônimo

Não faz sentido
O sentido da razão
Se minha mãe é minha tia
O meu primo é meu irmão.
Sou meu pai quando filho
Sou o filho tendo um pai
Sou canjica pra ser milho
Tudo sobe quando cai.

Vou te dar dinheiro
Vou agora ser ladrão
O bonzinho traiçoeiro
Virgulino Lampião.
Quando é noite não é dia
Se já é dia claridão
Na penumbra da sombra
Surge o brilho escuridão.

Sou o crime que pratica o réu
Sou o mar que banha o sertão
Sou a doçura amargura do mel
Sou a altura baixa do anão.
Sou o medo destemido
Da pimenta que não arde
Sou a surdez do ouvido
Da coragem do covarde.

Sou uma pessoa pobre
E tenho muito capital
Sou muito mais que nobre
E sou um anti-social.
Tive a idéia que não pensei
Quando esqueci da lembrança
De não pensar eu até lembrei
Que desisti da esperança.

Apocalipse de Zé Limeira

Quem acha que é preciso
O mundo se acabar
Pra ver o povo virar
Teleco-teco na terra
Buliram na atmosfera
Desse sistema solar

Eu vejo que é muito frágil
Pitomba presa num galho
De aroeira parida
Humanidade fundida
No forno quente de belzebu

Eu vejo o apocali-psicologia profunda
De que um dia virá
Um astronauta para me salvar

Pressinto nuvens escuras
Enferrujando armaduras
Um terremoto lunar
O anjo da virgindade
Fará de toda maldade
Um cogumelo solar

Um amuleto divino
No braço do pequenino
Escapulário de luz
Explorador da bondade
Está em cada cidade
Até no brejo da cruz

Eu vejo no apocali-psicologia profunda
De que um dia virá
Um astronauta para me salvar

Versos avulsos:

Eu me chamo Zé Limeira
Da Paraíba falada,
Cantando nas Escritura,
Saudando o pai da coalhada,
A lua branca alumia,
Jesus, José e Maria,
Três anjos na farinhada.

Jesus foi home de fama
Dentro de Cafarnaum,
Feliz da mesa que tem
Costela de gaiamum,
No sertão do cariri
Vi um casal de siri
Sem comprimisso nenhum.

Napoleão era um
Bom capitão de navio,
Sofria de tosse braba
No tempo que era sadio,
Foi poeta e demagogo,
Numa coivara de fogo
Morreu tremendo de frio.

É difícil um home moco
Aprendê pirnografia,
Um professor de francês
Honestamente dizia:
Tempo bom era o moderno,
Judas só foi pro inferno
Promode a virgem Maria.

São Pedro na sacristia
Batizou Agamenon,
Jesus entrou em Belém
Proibindo o califom,
Montado na sua idéia,
Nas ruas da Galiléia
Tocou viola e pistom.

Quando Jesus veio ao mundo
Foi só pra fazê justiça:
Com treze ano de idade
Discutiu com a doutoriça,
Com trinta ano depois,
Sentou praça na puliça.

Saíram lá de Belém
Cristo e Maria José,
Passaram por Nazaré,
Foram Betelelém,
Chupô cana num engem,
Pediu arrancho num brejo,
De noite armuçou um tejo
Lá perto de Piancó,
Na sexta-feira malhô
Foi que Judas vendeu Jésus!

Aonde Limeira canta
O povo não aborrece,
Marrã de onça donzela
Suspira que bucho cresce,
Velha de setenta ano
Cochila que a baba desce!

Carmelita e Carmeluta
É tudo uma coisa só;
Carmeluta é pro chambrego,
Carmelita é pro xodó,
È prato de pirão verde
Com xerém de mocotó.

Um General de Brigada,
Com quarenta grau de febre,
matou um casal de lebre
Prá comê uma buchada...
Quando fez a panelada
Morreu e não logrou dela,
Porco que come em gamela
Prova que ano tem fastio,
Peixe só presta de rio,
Piau de tromba amarela.


Versos avulsos:

Getúlio Vargas morreu
Foi com saudade da esposa,
Lampião inda tá vivo
Morando perto de Sousa
Por detrás do sete-estrelo
tem um casal de raposa.

No tempo do Padre Eterno
Getúlio já governava
Plantava feijão e fava
Quando tinha bom inverno
Naquele tempo moderno
São João viajou pra cá,
Dom Pedro correu pra Iá,
Escanchado num tratô...
Canta, canta, cantadô
Que seu destino é cantá.

Mais alguns versos avulsos:

No sereno sertão da Palestina
Eu cantava num dia de Finado,
Uma vaca pastava no cercado,
Um macaco comia uma menina
Um sargento chegava numa usina,
Um moleque zarôi vendia pente,
Um cavalo chinês trincava o dente,
Uma zebra corria atrás dum frade...
Quer saber quanto custa uma saudade
Tenha amor, queira bem e viva ausente!

Limeira só canta toada bonita
Pra moça da roça, pra moça da rua...
Braúna, chocalho de noite de lua,
Cardeiro enfeitado de laço de fita.
Carroça vestindo camisa de chita,
Novena na casa do Sítio Tauá,
Porteira, cancela, vereda, jucá,
Mutuca, facheiro, valado, pagode,
A cabra rodando na pimba do bode,
Cantando galope na beira do má".

(fonte: Música Nordestina e Jornal de Poesia)

Comentário: Caso queiras mais informações sobre Zé Limeira e sua obra, há ainda esta página do poeta Orlando Tejo:

http://www.revista.agulha.nom.br/otejo.html.

Conto: Um braço de mulher

Um braço de mulher

Rubem Braga

Subi ao avião com indiferença, e como o dia não estava bonito, lancei apenas um olhar distraído a essa cidade do Rio de Janeiro e mergulhei na leitura de um jornal. Depois fiquei a olhar pela janela e não via mais que nuvens, e feias. Na verdade, não estava no céu; pensava coisas da terra, minhas pobres, pequenas coisas. Uma aborrecida sonolência foi me dominando, até que uma senhora nervosa ao meu lado disse que "nós não podemos descer!". O avião já havia chegado a São Paulo, mas estava fazendo sua ronda dentro de um nevoeiro fechado, à espera de ordem para pousar. Procurei acalmar a senhora.

Ela estava tão aflita que embora fizesse frio se abanava com uma revista. Tentei convencê-la de que não devia se abanar, mas acabei achando que era melhor que o fizesse. Ela precisava fazer alguma coisa, e a única providência que aparentemente podia tomar naquele momento de medo era se abanar. Ofereci-lhe meu jornal dobrado, no lugar da revista, e ficou muito grata, como se acreditasse que, produzindo mais vento, adquirisse maior eficiência na sua luta contra a morte.

Gastei cerca de meia hora com a aflição daquela senhora. Notando que uma sua amiga estava em outra poltrona, ofereci-me para trocar de lugar, e ela aceitou. Mas esperei inutilmente que recolhesse as pernas para que eu pudesse sair de meu lugar junto à janela; acabou confessando que assim mesmo estava bem, e preferia ter um homem — "o senhor" — ao lado. Isto lisonjeou meu orgulho de cavalheiro: senti-me útil e responsável. Era por estar ali eu, um homem, que aquele avião não ousava cair. Havia certamente piloto e co-piloto e vários homens no avião. Mas eu era o homem ao lado, o homem visível, próximo, que ela podia tocar. E era nisso que ela confiava: nesse ser de casimira grossa, de gravata, de bigode, a cujo braço acabou se agarrando. Não era o meu braço que apertava, mas um braço de homem, ser de misteriosos atributos de força e proteção.

Chamei a aeromoça, que tentou acalmar a senhora com biscoitos, chicles, cafezinho, palavras de conforto, mão no ombro, algodão nos ouvidos, e uma voz suave e firme que às vezes continha uma leve repreensão e às vezes se entremeava de um sorriso que sem dúvida faz parte do regulamento da aeronáutica civil, o chamado sorriso para ocasiões de teto baixo.

Mas de que vale uma aeromoça? Ela não é muito convincente; é uma funcionária. A senhora evidentemente a considerava uma espécie de cúmplice do avião e da empresa e no fundo (pelo ressentimento com que reagia às suas palavras) responsável por aquele nevoeiro perigoso. A moça em uniforme estava sem dúvida lhe escondendo a verdade e dizendo palavras hipócritas para que ela se deixasse matar sem reagir.

A única pessoa de confiança era evidentemente eu: e aquela senhora, que no aeroporto tinha certo ar desdenhoso e solene, disse suas malcriações para a aeromoça e se agarrou definitivamente a mim. Animei-me então a pôr a minha mão direita sobre a sua mão, que me apertava o braço. Esse gesto de carinho protetor teve um efeito completo: ela deu um profundo suspiro de alívio, cerrou os olhos, pendeu a cabeça ligeiramente para o meu lado e ficou imóvel, quieta. Era claro que a minha mão a protegia contra tudo e contra todos, estava como adormecida.

O avião continuava a rodar monotonamente dentro de uma nuvem escura; quando ele dava um salto mais brusco, eu fornecia à pobre senhora uma garantia suplementar apertando ligeiramente a minha mão sobre a sua: isto sem dúvida lhe fazia bem.

Voltei a olhar tristemente pela vidraça; via a asa direita, um pouco levantada, no meio do nevoeiro. Como a senhora não me desse mais trabalho, e o tempo fosse passando, recomecei a pensar em mim mesmo, triste e fraco assunto.

E de repente me veio a idéia de que na verdade não podíamos ficar eternamente com aquele motor roncando no meio do nevoeiro - e de que eu podia morrer.
Estávamos há muito tempo sobre São Paulo. Talvez chovesse lá embaixo; de qualquer modo a grande cidade, invisível e tão próxima, vivia sua vida indiferente àquele ridículo grupo de homens e mulheres presos dentro de um avião, ali no alto. Pensei em São Paulo e no rapaz de vinte anos que chegou com trinta mil-réis no bolso uma noite e saiu andando pelo antigo viaduto do Chá, sem conhecer uma só pessoa na cidade estranha. Nem aquele velho viaduto existe mais, e o aventuroso rapaz de vinte anos, calado e lírico, é um triste senhor que olha o nevoeiro e pensa na morte.

Outras lembranças me vieram, e me ocorreu que na hora da morte, segundo dizem, a gente se lembra de uma porção de coisas antigas, doces ou tristes. Mas a visão monótona daquela asa no meio da nuvem me dava um torpor, e não pensei mais nada. Era como se o mundo atrás daquele nevoeiro não existisse mais, e por isto pouco me importava morrer. Talvez fosse até bom sentir um choque brutal e tudo se acabar. A morte devia ser aquilo mesmo, um nevoeiro imenso, sem cor, sem forma, para sempre.

Senti prazer em pensar que agora não haveria mais nada, que não seria mais preciso sentir, nem reagir, nem providenciar, nem me torturar; que todas as coisas e criaturas que tinham poder sobre mim e mandavam na minha alegria ou na minha aflição haviam-se apagado e dissolvido naquele mundo de nevoeiro.

A senhora sobressaltou-se de repente e muito aflita começou a me fazer perguntas. O avião estava descendo mais e mais e entretanto não se conseguia enxergar coisa alguma. O motor parecia estar com um som diferente: podia ser aquele o último e desesperado tredo ronco do minuto antes de morrer arrebentado e retorcido. A senhora estendeu o braço direito, segurando 0 encosto da poltrona da frente, e então me dei conta de que aquela mulher de cara um pouco magra e dura tinha um belo braço, harmonioso e musculado.

Fiquei a olhá-lo devagar, desde o ombro forte e suave até as mãos de dedos longos. E me veio uma saudade extraordinária da terra, da beleza humana, da empolgante e longa tonteira do amor. Eu não queria mais morrer, e a idéia da morte me pareceu tão errada, tão feia, tão absurda, que me sobressaltei. A morte era uma coisa cinzenta, escura, sem a graça, sem a delicadeza e o calor, a força macia de um braço ou de uma coxa, a suave irradiação da pele de um corpo de mulher moça.

Mãos, cabelos, corpo, músculos, seios, extraordinário milagre de coisas suaves e sensíveis, tépidas, feitas para serem infinitamente amadas. Toda a fascinação da vida me golpeou, uma tão profunda delícia e gosto de viver uma tão ardente e comovida saudade, que retesei os músculos do corpo, estiquei as pernas, senti um leve ardor nos olhos. Não devia morrer! Aquele meu torpor de segundos atrás pareceu-me de súbito uma coisa doentia, viciosa, e ergui a cabeça, olhei em volta, para os outros passageiros, como se me dispusesse afinal a tomar alguma providência.

Meu gesto pareceu inquietar a senhora. Mas olhando novamente para a vidraça adivinhei casas, um quadrado verde, um pedaço de terra avermelhada, através de um véu de neblina mais rala. Foi uma visão rápida, logo perdida no nevoeiro denso, mas me deu uma certeza profunda de que estávamos salvos porque a terra existia, não era um sonho distante, o mundo não era apenas nevoeiro e havia realmente tudo o que há, casas, árvores, pessoas, chão, o bom chão sólido, imóvel, onde se pode deitar, onde se pode dormir seguro e em todo o sossego, onde um homem pode premer o corpo de uma mulher para amá-la com força, com toda sua fúria de prazer e todos os seus sentidos, com apoio no mundo.

No aeroporto, quando esperava a bagagem, vi de perto a minha vizinha de poltrona. Estava com um senhor de óculos, que, com um talão de despacho na mão, pedia que lhe entregassem a maleta. Ela disse alguma coisa a esse homem, e ele se aproximou de mim com um olhar inquiridor que tentava ser cordial. Estivera muito tempo esperando; a princípio disseram que o avião ia descer logo, era questão de ficar livre a pista; depois alguém anunciara que todos os aviões tinham recebido ordem de pousar em Campinas ou em outro campo; e imaginava quanto incômodo me dera sua senhora, sempre muito nervosa. "Ora, não senhor." Ele se despediu sem me estender a mão, como se, com aqueles agradecimentos, que fora constrangido pelas circunstâncias a fazer, acabasse de cumprir uma formalidade desagradável com relação a um estranho - que devia permanecer um estranho.

Um estranho — e de certo ponto de vista um intruso, foi assim que me senti perante aquele homem de cara desagradável. Tive a impressão de que de certo modo o traíra, e de que ele o sentia.

Quando se retiravam, a senhora me deu um pequeno sorriso. Tenho uma tendência romântica a imaginar coisas, e imaginei que ela teve o cuidado de me sorrir quando o homem não podia notá-lo, um sorriso sem o visto marital, vagamente cúmplice. Certamente nunca mais a verei, nem o espero. Mas o seu belo braço foi um instante para mim a própria imagem da vida, e não o esquecerei depressa.


O texto acima foi publicado no livro “Os melhores contos – Rubem Braga”, seleção de Davi Arrigucci Jr., Global Editora – São Paulo, e selecionado por Ítalo Moriconi para compor o livro “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, pág. 169.

(fonte: releituras.com)

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

M.C. Escher

Maurits Cornelis Escher ou M. C. Escher (Leeuwarden, 17 de Junho de 1898 - Hilversum, 27 de Março de 1972) foi um artista gráfico holandês conhecido pelas suas xilogravuras, litografias e meios-tons (mezzotints), que tendem a representar construções impossíveis, preenchimento regular do plano, explorações do infinito e as metamorfoses - padrões geométricos entrecruzados que se transformam gradualmente para formas completamente diferentes.

Biografia

Escher era o filho mais novo do engenheiro civil chamado George Arnold Escher e de sua segunda esposa Sarah Gleichman. Em 1903, a família muda-se para Arnhem, Países Baixos, onde Escher pratica lições de carpintaria e piano até os treze anos.

Ele freqüentava a Escola de Arquitetura e Artes Decorativas, onde começou a estudar arquitetura e, mais tarde, artes decorativas. Em 1922 deixou a escola para se juntar a Samuel Jessurun de Mesquita, que o iniciava nas técnicas da gravura, se dedicando ao desenho, litografia e xilogravura.

Obra

Uma das principais contribuições da obra deste artista está em sua capacidade de gerar imagens com impressionantes efeitos de ilusões de óptica, com notável qualidade técnica e estética, tudo isto, respeitando as regras geométricas do desenho e da perspectiva.

Foi numa visita à Alhambra, na Espanha, que o artista conheceu e se encantou pelos mosaicos que haviam nas mesquitas do lugar, herança das invasões árabes do passado. Escher achou muito interessante as formas como cada figura se entrelaçava a outra e se repetia, formando belos padrões geométricos. Este foi o ponto de partida para os seus trabalhos mais impressionantes e famosos, que consistiam no preenchimento regular do plano, normalmente utilizando imagens figurativas e não geométricas, como os árabes faziam por causa da sua religião muçulmana, que proíbe tais representações.

A partir de uma malha de polígonos, regulares ou não, Escher fazia mudanças, mas sem alterar a área do polígono original. Assim surgiam figuras de homens, peixes, aves, lagartos, todos envolvidos de tal forma que nenhum poderia mais se mexer. Tudo representado num plano bidimensional.

Destacam-se também os trabalhos do artista que exploram o espaço. Escher brincava com o fato de ter que representar o espaço, que é tridimensional, num plano bidimensional, como a folha de papel. Com isto ele criava figuras impossíveis, representações distorcidas, paradoxos.

Referências na cultura popular

  • Matt Groening, criador de Os Simpsons, utilizou uma referência à Escher em sua tira Life in Hell. Em sua paródia à obra Relativity, coelhos desenhados caem de escadas em ângulos impossíveis. Groening posteriormente usou a mesma situação cômica em um episódio de Futurama. Quando jovem, o autor costumava colecionar pôsteres de Escher.
  • Um episódio de Os Padrinhos Mágicos mostra em seu título um design similar à obra Drawing Hands.
  • Em um episódio de Family Guy, Stewie e Brian compartilham um quarto no qual Stewie coloca na parede uma gravura de Relativity, o qual ele chama escadas loucas. Ele então a quebra enquanto joga frisbee.
  • A fase bônus do jogo Sonic, do Sega Mega Drive, contém uma animação de pássaros se transformando em peixes, uma clara referência à Sky and Water.
  • O jogo Lemmings, da produtora Psygnosis, possui um nível chamado Tributo a M.C. Escher, ainda que ele não apresente um cenário ao estilo do autor.
  • A figura de um grande olho com uma caveira em sua íris aparece na parede do quarto de Donnie Darko.
  • O videoclipe da canção Around the World, do grupo Daft Punk, dirigido por Michel Gondry, é baseado na obra Encounter.
  • O videoclipe da música Drive, do grupo Incubus, é baseado em Drawing Hands, começando com uma mão animada desenhando um pedaço de papel e uma segunda mão, para então formar a própria obra de Escher. Também mostra a mão desenhando o vocalista da banda Brandon Boyd.
  • No filme "Labirinth" (Labirinto - A Magia do Tempo), com David Bowie no papel principal (Jareth), há uma cena nítidamente inspirada em "Relativity", de 1953.

Algumas obras:

Animals Another World III Ascending and Descending
Hand with Reflecting Sphere Hall City Hell
Relativity Waterfall Heaven and Hell
Hall City Reptiles Gravity
Eye Eight Heads Dream
Drawing Hands Double Planetoid Day and Night
 
 
(fontes: texto de wikipedia.org e imagens de mcescher.net)

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Sputnik: 50 anos de Era Espacial

A história contemporânea mudou no dia 4 de outubro de 1957. Naquele dia, a humanidade perplexa e encantada tomava conhecimento de que a Lua não era mais nosso único satélite, e que uma pequena esfera de 50 centímetros de diâmetro, também, girava ao redor da Terra. E mais que isso, podia ser ouvida, emitindo o "beep" mais famoso da história.

Exatamente no dia 4 de outubro de 1957, a antiga União Soviética lançava o primeiro satélite artificial da história, o Sputnik, e dava início à Era Espacial.

O lançamento do Sputnik (que significa "companheiro" em russo) e sua colocação em órbita representam um monumento à inteligência humana e confirmaram as diversas bases teóricas necessárias à operação, desde as formulações de Isaac Newton, no século 17, até os cálculos e experimentos do russo Konstantin Tsiolkovsky, considerado o "pai dos foguetes", e do norte-americano Robert Goddard, no início do século 20.

Ano Geofísico Internacional
A história do "Companheiro" tem início no ano de 1952, quando uma comissão internacional decidiu estabelecer o chamado "Ano Geofísico Internacional", de 1 de julho de 1957 a 31 de dezembro de 1958. Em 1954 a mesma comissão conclamou as nações envolvidas a não medirem esforços para colocação de um satélite em órbita da Terra, com a função de mapear o planeta.

O Ano Geofísico Internacional - AGY - coincidiu com o período de máxima atividade solar. Na ocasião milhares de cientistas em mais de 67 países trabalharam em conjunto, realizando uma grande variedade de experimentos e observações, partilhando dados e resultados. O período marca uma das maiores séries de descobertas das características da Terra e do espaço, incluindo os Cinturões de Radiação de Van Allen.

O objetivo principal era o estudo da meteorologia, geomagnetismo, sismologia, oceanografia, radiação cósmica, ionosfera, glaciologia, paleoclimatologia, além de pesquisas biológicas e geológicas.

Apesar da boa intenção do Ano Geofísico Internacional, não se pode esquecer que naquela ocasião o mundo era divido em praticamente dois blocos inimigos. De um lado, a União Soviética e os países alinhados se fechavam em um bloco conhecido como "Cortina de Ferro", do outro lado, tendo os norte-americanos como principal expoente, estava o chamado de "Mundo Livre".

Do lado dos EUA, o governo do Presidente Eisenhower anunciou, em 1955, que a nação colocaria em órbita um satélite artificial, e determinou ao Laboratório de Pesquisa Naval Vanguard que representasse os americanos junto ao projeto do Ano Geofísico Internacional.

Do lado dos russos, a história do Sputnik mescla-se com a determinação quase fanática do principal cientista do projeto, o engenheiro russo Sergei Korolev, mais tarde levado ao posto de engenheiro-chefe do programa espacial soviético pelo então líder Nikita Khrushchev.

Corrida Espacial
A colocação em órbita do Sputnik, antes dos americanos, pegou as nações do "Mundo Livre" de surpresa. Os Estados Unidos sentiram o golpe e ficaram chocados. O feito demonstrava que os "temíveis comunistas" tinham capacidade de dominar o espaço, e pior que isso, eram capazes de despejar mísseis e bombas sobre a cabeça de qualquer cidadão do "Mundo Livre".

Para piorar a situação, o terrível Sputnik, que dava uma volta ao redor do mundo a cada 90 minutos, podia ser ouvido por qualquer mortal, emitindo seu assustador beep na freqüência de 20 Mhz. A escolha dessa freqüência não foi por acaso e de acordo com alguns analistas, teve dois motivos. 20 Mhz era, e ainda é, uma freqüência próxima da grande maioria das estações de radiodifusão de ondas curtas, que na época eram muito ouvidas. Além disso, podia ser captada por radioamadores, ansiosos em acompanhar o movimento do satélite. De uma só vez, os russos diziam ao mundo que estavam por perto e ao mesmo tempo contavam com uma grande rede de interessados em telecomunicações, que podia, sem nenhum custo, fornecer valiosas informações sobre a posição do satélite e propagação de sinais.

Ouça o beep do Sputnik

O mundo estava impressionado e nem bem tinha se recuperado quando veio o segundo golpe. No dia 3 de novembro os russos lançavam outro satélite, o Sputnik-2, com o primeiro ser vivo a bordo, a cadela Kudriavka, da raça laika.

Em curto espaço de tempo, os russos mostraram que era possível colocar em órbita um satélite artificial e mais importante ainda, que era possível colocar seres vivos no espaço. Os americanos precisam reagir. Até onde os russos iriam? O mundo, segundo eles, estava em perigo. Estava declarada a Corrida Espacial.

Fotos: No topo, o satélite Sputnik, de 58.5 centímetros de diâmetro e 83.6 quilos de peso. Na sequencia, cena do lançamento do Sputnik, que pode ser acompanhado no Apolochannel . Acima, a cadela Kudriavka, da raça laika, o primeiro ser vivo a ir ao espaço.

Leia também:

  • Sputnik: 50 anos de Era Espacial - Parte 1
  • Sputnik: 50 anos de Era Espacial - Parte 2
  • Sputnik: 50 anos de Era Espacial - Parte 3
  • Sputnik: 50 anos de Era Espacial - Parte 4
  • Vídeo: lançamento do Sputnik-1
  • Áudio: ouça o beep do Sputnik

    (fonte: apolo11.com)

  • A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.