sábado, 27 de dezembro de 2008

Gramática: regência e significação.

Há exatos dois meses, no fórum Só Português (anteriormente chamado SOLP), foi perguntado a mim se haveria alguma regra prática para indentificar se um verbo é intransitivo ou transitivo (direto, indireto ou direto e indireto). É muito comum que se pergunte isso, visto que, infelizmente, algumas gramáticas brasileiras não realizam eficientemente uma relação clara entre a regência de um verbo e sua significação. Trato de um esclarecimento maior dessa dependência; o que há nas gramáticas (com a necessária ressalva de duas ou três notáveis gramáticas) é tão-só uma lista expositiva de regências e de acepções. Esse pragmatismo impede, muitas vezes, o entendimento da flexibilidade da regência verbal quanto ao contexto em que se insere, induzindo o estudante que tão-só consumiu essa lista a equívocos. Segue, então, o tópico em que aparece a pergunta do forista:

"Existe uma regra pré-fixada [sic] para identificarmos quando o verbo é intransitivo?"

Olá, ***. Não existe regra que nos ajude a concluir se, fora da oração, certo verbo é ou não intransitivo. Todo verbo pode aparecer como intransitivo em uma oração. Quando nos deparamos com frase oracional, podemos identificar se um verbo é ou não intransitivo ao procurarmos por seus possíveis complementos. Atenta no seguinte texto:

Por não gostar de mamões, Joaquim comprou uma penca de bananas; em casa, não olhou sequer para ela, acabou-se esquecendo de comê-la. O olvido fora embora, entretanto, quando a fome apertou. O menino, então, lembrou-se das frutas, mas, quando as buscou, viu-as podres, escuras e malcheirosas. Apertou uma delas e notou quão mole estava. Corajosamente, gostou-a, fechando a cara por conta do forte amargor. Sua mãe, em dura reprimenda, disse-lhe que ele não mais compraria. A mulher passou, então, a comprar as frutas que o menino lhe pedia e a alertá-lo para que ele comesse.

Notemos, inicialmente, que ocorre, no texto acima, a repetição de alguns verbos (gostar, comprar, comer, apertar etc.). Repeti-os com o intuito de trabalhar as regências de cada um deles. Em "por não gostar de mamões", percebemos que a ação do verbo gostar transita de Joaquim aos mamões através da preposição de. Na outra aparição desse verbo, a transitividade é direta, sem a presença de preposição, pois, nesse caso, a acepção do verbo é a de provar, experimentar pelo paladar. Outro verbo que apresenta, no texto, regências distintas é apertar. Nota que, em "quando a fome apertou", o verbo é intransitivo, ou seja, a ação verbal está contida, não transita e, portanto, não apresenta complementos. Em outra ocasião, na oração "Apertou uma delas e notou quão mole estava", esse verbo aparece como transitivo direto. No texto, o mesmo ocorre com os verbos comprar e comer, o que evidencia a minha afirmação primeira de que todo verbo pode limitar sua transitividade, ou seja, pode aparecer como intransitivo. A partir do texto, podemos também concluir que a regência de dado verbo depende de sua acepção. Posso citar o verbo assistir como exemplo dessa última afirmação, o qual, no sentido de prestar assistência, é transitivo direto e, nas acepções de presenciar, acompanhar visualmente, e de caber, competir, é transitivo indireto. Gostaria de esclarecer ainda que, no caso do verbo comer em sua última aparição no texto, apesar de haver um complemento no campo das idéias ou subentendido (frutas), a transitividade só é revelada pela presença ou não de complemento escrito, o que o faz, portanto, intransitivo.

Isso é tudo o que, por ora, tenho a te dizer sobre o assunto, ***. Um abraço, e até outros tópicos.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Crônica: O copo inglês cheio d'água.

O copo inglês cheio d'água

Gustavo Henrique S. A. Luna

     Eis a noite parda, a inquietude cinza da madrugada; a aurora tarda a surgir triunfante, enquanto cá fico a admirar o volume límpido contido em copo inglês. Que posso eu diante de tanta tranqüilidade, o mais cruel dos oximoros? A noite não me permite o sono, apesar de toda a quietude. Na cama, modelando figuras ideais no forro do quarto, sentia sede, sim, demasiada sede. Levantei-me, então, decidido a encarar a madrugada, fruir de toda a paz que me é concedida pelo silêncio das horas dos cães ululantes, que, como os homens, também devem sofrer de mal congênere aos que tanto atormentam a humanidade. Na rua deserta, aquele canino inquieto, latindo em direção ao nada, é o reflexo do homem contemporâneo, que teme a tudo antes de conhecer o inimigo e é insatisfeito por natureza; as insatisfações dos dois são torpes e idênticas, o incômodo de não ter o que não pode ser possuído torna-os cegos; latem, pois, ao nada, que é o reflexo do que são ou do que, inutilmente, desejam ser. O breu da sala instiga-me, então, lembrando-me do cão, a imaginar quão triste é a escuridão e quão ricos somos por desfrutarmos de luz, que logo a deixo insurgir-se com descomunal ferocidade através de um estalo, em minha mente e no interruptor. A luz veio-me como indicativo de que sinto sede, idêntica à que me pôs de pé e induziu-me à trajetória do quarto à cozinha, mas muito mais reveladora, sede especial, que é o verdadeiro indício de quanto está em minhas mãos, que são apenas duas, enquanto há milhares espalmadas no chão, ajudando seus corpos desprovidos de forças a se reerguerem, porem-se de pé para, enfim, enxergarem tudo o que está, de fato, diante dos olhos, ou, para muitos, acima da cabeça. Tomo o copo que primeiro me aparece, um tipo inglês, dos que são enchidos de cachaça nos mais recônditos bares da cidade; noto, porém, que nunca houvera semelhante copo em casa, o que não me encorajou a perguntar a ninguém a origem de tal objeto, visto que, em tal horário, todos dormem e só eu teimo em enfrentar a madrugada. Cai presto a água, e o copo inglês vai, sutilmente, deixando-se preencher pelo líquido, que, em tal instante, é o sinal de que ainda sinto sede. Jaz quieto, então, o copo na mesa, e eu já não sei, de fato, o que me leva fitá-lo com tanta insistência. Que é de minha sede? Ainda a sinto, mas não consigo principiar atitude de consumir toda aquela água. Não sei se realmente merece ser bebida por mim; seria de todo significante se pudesse abeberar aos outros que dormem saciados de esperança nas praças, calçadas etc; que as mãos, então, os sustentem, visto que somos, todos os que têm duas, e somente duas, mãos vastas, os responsáveis, indiretamente, por todos os flagelos de história secular. A luz, tendo-me atingido severamente os olhos cansados de toda a neurastenia egoísta, foi, para mim, a explicação em voz maternal que me atingiu docemente as têmporas e penetrou-me os ouvidos, livrando-me do limbo cruel que não me permitia atentar nas mais simples posses, que são deveras verdadeiros abismos que me separam dos que sofrem o castigo programado, a dor plantada no peito que ainda bate em sons destoantes, mas muito mais sinceros que os produzidos pelos corações fajutos dos verdadeiros criminosos: os neurastênicos cujo maior conflito existencial é a escolha de um novo aparelho celular.
     Horas antes da água que continuo a fitar, houve, em meu bairro, comício, muito barulho, gritos e enganosa exaltação. Muitos dos que lá estavam desfiguravam, sem atentar na atitude nefasta, o símbolo do líder, que, para eles, naquele momento, seria o ser verdadeiramente polido, sem máculas, e comprometido com o povo. A liderança, infelizmente, ganhou matizes obscuros através de discurso fervoroso; alguns, que não queriam gritos, perceberam a proporção da algazarra e partiram, outros, cujos olhos brilhavam esperançosos, mas pouco observadores, permaneciam a assistir ao candidato de voz bravia. Havia lá muitas mãos, que aplaudiam sem sequer nunca ter entrado em contato com as outras, sujas, espalmadas no chão; a indiferença que lhes é própria está no mutismo e na cegueira, posto que os pés que forte pisam o chão sejam indício de que pisar é realmente o seu forte. A paisagem, para os pseudo-românticos do séc. XXI, é ideal, olvidada de todas as chagas sociais e erigida consoante progresso mendaz, em que progredir é promover o crescente somatório de concreto nas paredes, que, pelo que eu saiba, não alimenta as bocas mudas, senão contribui com a distorção; o abismo torna a crescer.
     Creio ser sempre necessário, nas mesas de todos os citadinos, um copo inglês cheio d'água. Que a luz atinja-lhes as têmporas e livre-os do limbo que promove o abismo. Quando torno a encarar o copo parco, ele parece debochar de minha falta de atitude; quão difícil é consumi-lo de todo, em movimento presto e brusco, como se sofresse de susto tão-somente incoativo. A catarse paralisa-me, o torpor toma-me como a um viciado, sem, entretanto, livrar-me do pensamento: as mãos calejadas, pequenas, abertas, escorando-se, gritantes, sujas, espalmadas no chão... Subitamente, bato o joelho no suporte da mesa, e então o copo se abala, a circunferência da base entra a girar em movimento hipnótico, periódico e pertubador; a ameaça a toda aquela perfeição líquida se fez rápida e deixou-me extremamente apreensivo. Não poderia toda a revelação esvair-se tão brusca e fortemente como uma explosão. Girou, girou e girou, mas não tombou; a água, entretanto, permaneceu em movimento aguerrido. Veio a conclusão pungente e viperina de que o copo com água é o conjunto mais frágil do mundo, o que me exigiu uma digestão lenta, repleta de decepção e de tristeza tirana. O apaziguar do pensamento e os olhos úmidos agora permitiam-me sentir a dor no joelho, que, para mim, foi a mais saborosa dor de que já provei, visto que a soube medir com precisão; ela, de fato, não era uma dor, senão o alerta de que melhorei das cismas provocadas por um copo inglês cheio d'água. Pude, enfim, respirar profundamente e ter preciso norte. A seriedade de todo o susto revelado pelas mãos que desejam mais o copo do que eu foi logo preenchida por risos sonantes, de contentamento plácido e sopitado. Tomei rápido o copo nas mãos e bebi-o com a mais feroz velocidade, para finalmente notar que eu não estava com sede... Marcara o encontro com o copo inglês cheio d'água, mas desde o quarto não sentira sequer um pingo de sede. Essa experiência e a apreensão de todo o valor contido em pouco objeto cristalizaram-se em minha mente, uma ferida escusa fora sanada de todo e revelara-me quão grandes são as minhas mãos, que são duas, e somente duas. Levantei-me da cadeira em que estava, agora produto de catarse, que me removeu máculas fortes, e dirigi-me à parede que contém o interruptor, sem saber, contudo, se seria realmente o cessar da luz o que viria após o estalo. O estalo veio, mas a luz não se apagou... A aurora não mais se mostraria tão triunfante, visto que, em mente vítima de um copo inglês cheio d'água, a idéia de que ela se mostraria assim não seria válida para todos. O sono, então, chegou, e fui ao quarto para dormir com a certeza de que há muitas mãos espalmadas no chão e de que possuo duas, e somente duas.

(por Gustavo Henrique S. A. Luna)

domingo, 31 de agosto de 2008

Conto: Zecapinto

Zecapinto

Caio Porfírio Carneiro

    Zecapinto criava pinto. Criava um pinto, que morreu. Criou outro. Que morreu. E outro ele criou. Morreu. Tantos criava, tantos morriam. Um suceder de pintos criados, mal criados, e um rosário de pintos mortos.
    Então pensou, pensou, mão no queixo, e concluiu que em vez de pinto o certo seria criar cabra. Criou a primeira e ela não morreu. Criou a segunda, a terceira, a seqüência numérica transformou se em aprisco. A multiplicação tornou se geométrica quando, por engano, comprou um bode, que cresceu e, crescido, não saía de cima das cabras.
    Cabra a dar com pau. Então Zecapinto, que passou a ser chamado de Zecacabra, tomou uma resolução: vendeu todo o lote. Saíram berrando, estrada afora, o bode escanchado em cima de uma delas.
    Zecacabra ficou só com seus cismares. Olhava o nascer do sol, o pôr do sol. Lembrou se dos pintos frágeis e chorou. Lembrou se das cabras e voltou a chorar.
    Valeu se do amigo Ariosto:
    – O que faço da vida?
    A resposta veio seca e pronta:
    – Case se.
    Levantou a cabeça, um susto e um espanto:
    – Com quem?
    – Com uma mulher.
    Outro susto e outro espanto:
    – Onde vou encontrar?
    – Procure.
    Zecacabra, que passou a ser conhecido por Zecassó, pôs o apurado da venda das cabras no bolso, fechou a casa e mandou se pelo mundo, uma única pergunta quando avistava uma mulher, quer casar comigo? Sempre uma única resposta, não. Nenhuma mulher o queria. Velha, gorda, alta, baixa, aleijada, barriguda, negra, branca, magra, todas lhe balançavam a cabeça na pronta negativa.
    Ficou tão conhecido com o seu pregão que passaram a chamá lo de Zecacasacomigo. E ele sempre alucinado, à procura da outra metade. Chegou a abrir o sorriso de esperança quando viu a bela saia vermelha:
    – Quer casar comigo?
    A voz áspera veio em reprimenda:
    – Me respeite. Sou bispo.
    Então Zecacasacomigo desistiu de vez. Voltou para o lar abandonado, roto, cansado, desanimado da vida e de tudo. Abriu a casa, escancarou as janelas, estirou se na rede e dormiu dias e dias.
    Acordou com a voz meiga e doce chamando o de muito longe.
    Que veio vindo, veio vindo. Quando abriu os olhos viu a beleza de moça ao lado, mão segurando o punho da rede, o colar de pérolas dos dentes abrindo o mais belo sorriso dos últimos tempos.
    – Vim para ficar.
    A surpresa enorme transformou se em desejo e decisão.
    Rapidamente puxou a para a rede. Não perguntou de onde ela veio. Foi todo um dia e uma noite de aí meu Deus, eu morro, quero mais, ais e uis sem fim.
    Quando suspiraram, o vento soprava forte e ela o chamou de Zecameu. E ele a chamou de Mulherminha. Só então o cenho franziu:
    – De onde você veio?
    Ela mal abriu os olhos, como se sonhasse:
    – De muito longe.
    – Fica mesmo comigo?
    – Sou sua.
    E dele ficou sendo. Zecameu, mais conhecido por Zecadela, criou alma nova. Plantou e colheu. Assoviava e ria. O jardim enfeitava se de flores, o pomar pejou se de frutos.
    Até aquela manhã orvalhada. Zecadela, que ia com disposição ao trabalho, voltou do meio do caminho para beijá la mais uma vez. Encontrou a pronta para sair, dedos ágeis dando retoques na pequena trouxa.
    – Vou te deixar, Zecaera.
    Como um raio que o fulminasse:
    – Zeca o que?
    – Zecaera, porque já não és meu.
    Sentou se, desarvorado:
    '– Para onde vais, Mulherminha?
    Ela, resoluta, dava ligeiro nó no matulão:
    – Vou me embora pra Pasárgada. Lá sou amiga do rei.
    E se foi. A perplexidade dele transformou se em ódio:
    – Vá! Vá seguir o seu fado, ó mulher!
    Desandou, desabou nos calcanhares, como sentindo cólicas, e a explosão de choro levou o ao desespero, mãos trêmulas a correr os cabelos. Assim ficou até escurecer e o vento entrou livre porta adentro.
    Levantou se, espantou as sombras com a luz do candeeiro, fechou portas e janelas, sentou se à cabeceira da mesa, olhos neutros no vaso de flores murchas, trocadas diariamente por ela.
    Pouco dormiu.
    Pela manhã a resolução estava tomada. Barbeou-se, banhou se, vestiu a melhor roupa, e valendo se do velho Ford do velhíssimo vigário da vila foi para a grande cidade. Passeou ao léu no meio do trânsito. Parou frente à vitrina e ficou a admirar os vestidos vaporosos, que cairiam bem no corpo dela. E a viu no reflexo do espelho da vitrina. Rodou nos calcanhares, palpitando.
    Era outra, linda como ela. Ali parada, meio riso de simpatia.
    Sorriu largo para ela. Ela riu para ele.
    – Oi.
    A resposta dela ampliava a meiguice:
    – Oi.
    Aproximou se, ajeitou a gravata, alisou o cabelo. Ela continuava sorrindo, um sorriso tímido que o encantava e lhe tirava as palavras. Pôs a mão no quadril. Desfez a posição. Apoiou se num pé, no outro. Pigarreou. E surpreendeu se com o próprio convite:
    – Vamos ao cinema?
    A resposta veio no sorriso mais tímido ainda:
    – Vamos.
    Pegou-a pela mão e ela apertou lhe os dedos. O frenesi desceu lhe pela espinha. Andaram, desviando do povo, algumas quadras. Ele procurava iniciar conversa, desesperadamente.
    Quando encontrou as palavras, sofreu de decepção:
    – Não chove há quinze dias.
    Ela olhava o, media o, rabo do olho. Ele se sentia examinado e sufocava se no paletó e na gravata. O desastre foi maior ainda:
    – O Ford do vigário da vila está batendo biela.
    Chegasse em casa se esbofetearia. O cinema, ali perto, foi a salvação.
    – Cá estamos.
    Aliviou se intimamente pelas palavras salvadoras. Comprou os ingressos sem ler o cartaz. Conseguiram, no quase escuro, filme começado, duas poltronas isoladas. Poucas cabeças.
    Ele olhava a tela, via as figuras e não via o filme. Passou, muito lentamente, o braço sobre o encosto da cadeira dela e dela sentiu a mão leve pousar lhe na coxa. Disfarçou o extremeção com pigarro alto, seguido de psius de cadeiras diversas. A mão foi subindo e ele, surpresa crescente, petrificava se. A voz dela veio acariciante, hálito morno:
    – Meu preço é alto.
    Não compreendeu. Encarou a na penumbra e ela o olhava, sorrindo.
    – Que preço?
    – Pela metida.
    – Pelo o quê?
    – Depois não vamos meter gostoso? Cobro caro. E você paga o hotel.
    E a mão chegava lá. Ela apertou a trouxa encolhida:
    – Na cama dou um jeito nele.
    Desabou de vez. Escorregou na poltrona. O pensamento, num lance, voou para ela, tão linda, sempre a cuidar do jardim, do pomar, das flores no jarro sobre a mesa.
    Soltou sem pensar:
    – Você é uma puta.
    A mão largou a trouxa, a voz cortou áspera:
    – Me respeite, seu veado.
    A vontade súbita de chorar levou o a levantar se e sair tropeçando poltronas.
    Na rua, desnorteado, olhou e olhou e não encontrou rumo a tomar. A buzina de um carro, seguida do palavrão, encaminhou o à esquina. De lá, pernas bambas, para o jardim da praça.
    Esparramou se no banco, uma aflição indefinível a atropelar se em soluços que não vinham.
    Aos olhos chegaram imagens do pomar com frutos podres no chão, do jardim em abandono, das flores mortas no vaso.
    Mais impulso que decisão, levantou se e tomou o rumo de casa. Paletó no braço, laço frouxo na gravata, sapatos na mão, feria se nos pedregulhos da estrada, sufocava ao sol de espelho. Descansou à sombra da árvore copada. E cochilou.
    Despertou ao ouvir muitos pios. Perto da cerca vários pintos em torno da galinha que ciscava. Olhou para os lados, lá se foi de quatro, e mais que ligeiro pegou um deles. E caminhou depressa, paletó entrouxado ao sovaco, sapatos presos aos cadarços pendurados ao ombro, piar aflito do pinto no bolso.
    Avistou a casa, sozinha ao escurecer. O vulto passou ao largo, sentido contrário.
    – Quem vai lá?
    – Zecapinto!
    Seguiram se à resposta uma leveza interior e uma santa alegria.
    Abriu a porta assoviando, acendeu o candeeiro, jogou longe, pela janela, o vaso com flores murchas. Pôs o pintinho sobre a mesa, e ele mal piava, asfixiado como viera no bolso sacolejante.
    Olhou-o cheio de pena e esperança. Pena por saber, pela experiência, que ele não viveira muito. Esperança de que o próximo, que adquiriria logo cedo, sobrevivesse. Do contrário outro viria, e outro, mais outro...
    Cruzou os braços sobre a mesa, ouvindo ao longe o piar muito tênue do pintinho, ali próximo à sua cabeça bambeada.
Dormiu feliz.

(fonte: Jornal do Conto - www.revista.agulha.nom.br/cporfirio5.html)

terça-feira, 15 de julho de 2008

Crônica: Há um ano...

    Há um ano, à tarde de um domingo tranqüilo, tão calmo que me punha angustiado, resolvi criar este blogue. Como sabe o visitante que leu a postagem inaugural, a minha história com blogues sempre mostrou-se um total desazo por conta dos problemas que me surgiam quando tentava publicar textos: a ferramenta perra de formatação que alguns maus servidores forneciam e a pouca estabilidade do contato entre servidor e blogueiro. O salvador-da-pátria foi um aplicativo de edição que ainda me auxilia bastante; tratei de descrevê-lo naqueloutra postagem, posto que aqui ficarão apenas os outros 364 dias; a falta de arrojo da inauguração morreu por lá mesmo.

    Escrevi pouco, mas o texto, seguindo outro rumo, tornou-se agora o que aparenta ser, visto que é de todo dinâmico: uma obra sem prazo de conclusão. O momento da crônica e da poesia é decerto o que mais perdurou em meus textos, aqueles realmente próprios do momento que vivia, pois muitos outros, senão a maioria dos que por mim foram escritos nesse primeiro ano findo, foram as encomendas semanais das aulas de redação. Outros tantos, encomendados, convergiram com o escopo de minha escrita natural, e alguns desses acabaram parando neste blogue. Há textos meus que temo publicar, posto que me instiguem ao forte desejo de vê-los quedados aqui; desses textos atrevidos, ousei publicar um em que tratava do nonagésimo aniversário de uma grande revolução que delineou o rumo da história do séc. XX; a resposta, presta, foi a perda de meu diretório de hospedagem em um servidor europeu. Pensei ter sido o fato um problema interno ao sistema de cadastros do servidor ou talvez um tremendo caos no banco de dados de meu diretório, tão catastrófico que me causou a perda de todo o meu cadastro; posto que os servidores gratuitos de hospedagem apresentem problemas comuns de operação, a segunda hipótese era deveras insólita. Custou-me pouco saber o motivo do ocorrido, pois recebi mensagem eletrônica do servidor, que me informava o que eu já tinha em mente e que o leitor agudo decerto já percebera.

    Mudei, por tudo que fora feito, para este servidor, que espero ser definitivo. No que concerne às novas ferramentas fornecidas, tive estima apenas àquelas mais pragmáticas, que tratam tão-só da organização dos textos e das ligações externas; a mudança do visual (template) foi mera conseqüência da harmonia e da estabilidade que o blogue já estava assumindo. O contador foi culpa de minha curiosidade pouco importante de ter noção do ritmo das visitas, obviamente. Pode ter estranhado o leitor atento, ou nem tanto, que o esqueleto deste blogue carece de um sumário legítimo, tão necessário quanto aquele impresso que auxilia o início de leitura. Espero, entretanto, ter maior número de textos para, finalmente, preparar divisão em categorias. Tenho, atualmente, a formatação, tanto dos textos quanto dos outros componentes do blogue, como forte adjutório à estabilidade dos escritos, dos rascunhos.

    Como se pode notar, não publico somente textos de minha autoria, senão todos os que me motivam a publicação, de modo que a fonte e o crédito são prioridades. Desses textos, que assumem posto muito mais elevado quando comparados com meus desazados rascunhos, destaco o poema Amor Platônico de meu amigo Robson, rapaz que detém habilidade natural, deveras espontânea, para a cor dos versos; a rima entrega-se presto ao controle desse poeta cantador e ele, com assustadora criatividade, sabe ordernar os versos com bastante esmero. Apesar de todo esse domínio da rima, publiquei o referido poema, que é branco e não deixa a desejar àqueloutros a que dirigi encômios que não julgo exagerados. Os outros textos são bastante vários, alguns tratam de descobertas da ciência, outros são crônicas e poesias de autores cujos estilos admiro. Na abertura deste ano, compus alguns versos livres, caquéticos e engraçados, uns versos bugios; não vieram, portanto, ao blogue. Eles são frutos, às vezes, do cansaço e surgem de supetão; muitas vezes, assustam-me, de modo que não os queria assim, ou seja, são quase autônomos. A maioria deles é fruto de uma madruga tediosa. A criação também é um tipo de resistência, não àquilo que me é externo, senão às minhas condições no exato momento em que escrevo. Ultimamente, tenho-me mostrado inábil e, por conseqüência, inerme aos acontecimentos, tenho criado muito pouco, o que é, de fato, ir à guerra despreparado. Sinto-me, por vezes, vilão de uma condição que me impus; devê-lo-ia reverter em papéis escritos. Tenho-me posto sob a teoria, quase como espécie de títere, através do qual ela controla-me o ânimo. Outro entrave é a sistematização da escrita, que já fora tema de outra crônica minha, um texto mais consciente que este. Quem diria que, para representar o primeiro ano do blogue, viria este desazo que escrevo quase imerso em sono? Quem não me deixa dormir é o bom Duke Ellington e sua orquestra, no festival de Newport em 1956. E o histórico solo do saxofonista Paul Gonsalves em Diminuendo And Crescendo In Blue, de fato, mantém-me atento à tela do computador.

    No final do ano passado, talvez em novembro, passei a escrever em um fórum de Língua Portuguesa. Surgiam as dúvidas de fonologia, ortografia, sintaxe, etc., e eu tratava de colaborar, ajudando os confrades. Acompanhei o desenvolver do fórum, que começara tímido, com poucos membros e sem muitos tópicos. Hoje, há 144 tópicos, 440 mensagens e 1.065 membros, o que é quantia razoável para um fórum que entrou em funcionamento em abril de 2007. Das 440 mensagens, escrevi até agora 130 mensagens, das quais algumas tomaram volume de tópico e vieram parar neste blogue. Destinarei, quando estiverem montadas as categorias deste sítio, espaço para as questões gramaticais; algumas me forçavam a tratar por completo de alguns assuntos de sintaxe, como foi o caso do tópico sobre a palavra que, visto que é forçoso, sim, concluir toda a explanação. Necessário também é ser claro, bem explícito, em relação a algumas questões. Tanto exijo isso de mim, que Giorgio, amigo e um dos mais ativos foristas do SOLP, perguntou-me como tenho paciência para a explicação demasiada, apurada, que tampa os buracos e permite que haja total apreensão do assunto por parte do forista que possuía a dúvida. Ora, não costumo responder com um sorriso amargo daquele tipo prestadio que tão-só responde às dúvidas, pois, se as respostas lá estão escritas, têm de ser bons registros, para que no futuro, se o fórum se mantiver de pé, sirvam como fonte para dúvidas comuns. Do fórum a este blogue, as respostas mais volumadas chegavam em boas quantias. O resguardo do anonimato dos que tinham a dúvida é atitude que ainda priorizo, visto que alguns receiam aparentar tê-las. Dúvidas são dúvidas, todos temos; a anonímia, entretanto, é mantida. Todos os tópicos gramaticais deste blogue trazem, e continuarão a fazê-lo, a marca do fórum SOLP; são textos meus que estão registrados em tal instrumento de comunicação entre internautas.

   Quanto à música, expressão vivaz do espírito humano, a qual tanto estimo, penso em publicar antigas resenhas minhas, revisadas e completadas. Antigamente, não sei se já falei sobre isso aqui no Rascunho, possuía um blogue inteiramente dedicado ao roque, no qual resenhava álbuns de bandas de progressivo, hard rock, metal, blues-rock etc. Cheguei a escrever sobre os álbuns Heavy Horses, da banda inglesa Jethro Tull; Rotters' Club, da também inglesa, da Cantuária (Canterbury), Hatfield and The North (por sinal, o cenário progressivo da Cantuária é riquíssimo); Tons of Sobs, da Free, entre outros discos. Se eu decidir, realmente, publicar resenhas de álbuns e de bandas, serei mais amplo, tratando de blues, de jazz (estilo que ainda pouco conheço) e do já ventilado rock 'n' roll. Penso em tratar das boas bandas progressivas da Itália, jóias dessa vertente do roque, as quais só passei a conhecer no início de 2006. Este blogue completa, enfim, um ano composto de momentos frutíferos e de outros tão quietos, preguiçosos, que ensombravam um mês, que urgia ser preenchido por rascunhos quaisquer, ainda que caquéticos, em total desazo. Escrever, em parte, é isto: o paradoxo de refletir sem registrar, ou registrar de tal modo que a reflexão ganhe outras formas pelo leitor. O silêncio em música é demasiado semelhante à pura reflexão referida, quieta, sem o registro presto, na escrita. A introspecção, as tentativas de pensar diverso o que merece ser escrito, já nos vale como intervalo entre o ínicio da resistência, da criação, e o estourar da caneta, nervosa, sobre o papel. É, sim, essa mesma importância de resistir a si e ao que será escrito, esse intervalo de instropecção, que também define o silêncio forçoso na música: espécie de necessidade da composição, ora apaziguante, ora angustiante; causa, justamente, na escrita, a ânsia pelo manchar do papel. De fato, ninguém conhece de todo o silêncio, posto que ele é a pura sugestão inserida ao que é composto; todos, entretanto, têm a falar sobre o mutismo que aparentemente não nos diz nada. O silêncio, tal como o intervalo de reflexão na escrita, nunca será fruto de meras ilações; o estouro da conclusão, vã dedução, sozinho, não leva à escrita. Ele, o silêncio, certamente, diz-nos tudo, traça-nos o itinerário que devemos seguir a fim de começarmos a escrita. Quando, então, estamos na iminência do registro, as idéias já estão cá nos bolsos, insurgentes, e querem-se antecipar umas às outras no papel com imensa fúria. O texto do primeiro aniversário, que é escrito em um domingo, apesar de o dia que marca o primeiro ano findo do blogue ser esta terça-feira, começa e termina em mesmo ar, dominado pela mesma angústia motivada por tarde de domingo semelhante em tudo àqueloutra que me deu motivos para criar este blogue. Texto semelhante a visita desjeitosa que não sabe como se despedir do dono da casa, este não sabe edificar o bom desfecho, que deixa boa aparência ao texto. Um remate presto é o que quero depois de tão pouco falar sobre um ano de O Rascunho, um registro pouco e imarcescível de mim: simplesmente, fim.

(por Gustavo Henrique S. A. Luna)

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Sugestão musical: Machiavel - Jester (EIM 1976)

Machiavel foi banda belga de progressivo sinfônico, que se mostrou bastante sólida, complexa e melódica. Jester foi o segundo álbum do grupo e um de seus clássicos lançamentos. A música é exuberante e atmosférica, com muitas demonstrações de bom uso de guitarra e de teclado (sintetizadores, Mellotron, moog e piano elétrico); a banda soa muito comum ao rock progressivo sinfônico europeu do final da década de setenta. A principal influência da banda parece ser Genesis, banda britânica de mesmo gênero; Machiavel, entretanto, incorporou também, nas porções mais cativantes das canções desse álbum, muitas características do piano elétrico aos moldes da Supertramp, outra banda britânica. Por alguma razão estranha, eles puseram a única faixa mais fraca no rosto do álbum, como faixa inicial. Wisdom é espécie de faixa inestante e soa, em parte, como algumas bandas tediosas do chamado neo-progressivo. Não te assustes, porém, com o fato de haver forte desazo inicial, visto que o restante do álbum revela excelentes canções. A faixa título mostra-nos muito bem todas as faces da banda, trazendo passagens instrumentais belas, sinfônicas e melódicas que permanecem associadas às porções cantadas em rara simbiose musical, que decerto é aderida à memória presto e forte logo na primeira audição. Sparkling Jaw e In the Reign of Queen Pollution são outros exemplos dessa combinação, enquanto Mr. Street Fair é faixa mais puramente sinfônica. Tirante o desazo inicial, a faixa Wisdom, Jester é álbum maiúsculo e recomendado a todos os fãs de progressivo sinfônico.

Faixas:

1. Wisdom (6min)
2. Sparkling jaw (7min)
3. Moments (3min17s)
4. In the reign of queen pollution (6min56s)
5. The jester (5min20s)
6. Mister street fair (7min55s)
7. Rock, sea, and tree (9min52s)
8. The birds are gone (1min49s)
9. I'm nowhere (2min22s)

(fonte: vintageprog.com)

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Gramática: questão de concurso.

Eis uma das questões de concurso mais interessantes que já apareceram no fórum SOLP. Ela trata puramente da análise da correção de trechos extraídos de um edital de licitação. O que mais me atraiu nessa questão foi a sutileza do deslize cometido numa das opções, que representa, obviamente, aquela que deveria ser marcada. Cá está o tópico em que ela apareceu:

Marque o trecho com erro de natureza sintática.

a) Poderão participar da licitação pública regulada por este Edital pessoas físicas ou jurídicas, associadas ou não, domiciliadas ou estabelecidas em qualquer parte do território nacional, exceto os diretores, membros efetivos e suplentes da Comissão de Licitação.

b) Em se tratando de participação em Licitação Pública para aquisição de imóvel unifamiliar, o(a) licitante deverá comprovar, no ato da assinatura da Escritura, que não possui nem possuiu, nos últimos 12 (doze) meses, imóvel de uso residencial no Distrito Federal.

c) À Terracap é reservado o direito de não efetivar a venda, na hipótese do não-cumprimento de quaisquer das providências indicadas neste Edital, sem prejuízo das demais medidas aqui previstas.

d) Fica a Diretoria Colegiada da Terracap autorizada a alterar a data da licitação, revogá-la no todo ou em parte, excluir itens em qualquer fase do procedimento licitatório, em data anterior à homologação do resultado, sem que caiba ao(s) licitante(s) ressarcimento ou indenização de qualquer espécie.

e) O licitante interessado, antes de preencher sua proposta de compra, deverá inspecionar o lote de seu interesse, para inteirar-se das condições e do estado em que se encontram, podendo recorrer à Terracap para obter informações mais detalhadas e precisas.

(Edital nº 04/2004, Licitação Terracap, com adaptações)

Olá, ***. Agradeço-te, antes de tudo, a excelente questão que nos trouxeste. Ela exige de quem a revisa a máxima atenção a fim de que possa notar o pequeno deslize de concordância na opção e. Repara que há a forma verbal se encontram flexionada de modo incorreto, visto que o referente sintático é a palavra lote. O verbo deveria ficar, pois, no singular. Nota também que a palavra se, próxima ao referido verbo, não é parte integrante dele, mas sim uma partícula apassivadora; o verbo não é pronominal, é transitivo direto. A palavra lote seria, então, o sujeito paciente implícito na oração. Ex.: (...) em que o lote é encontrado (em que se encontra). O trecho totalmente corrigido ficaria assim:

"O licitante interessado, antes de preencher sua proposta de compra, deverá inspecionar o lote de seu interesse, para inteirar-se das condições e do estado em que se encontra, podendo recorrer à Terracap para obter informações mais detalhadas e precisas."

Um abraço, ***, e até outros tópicos.

domingo, 1 de junho de 2008

O prato amargo.

    Na sociedade hodierna, há notável apatia dos sentidos dos homens, visto que eles não têm tempo suficiente para praticá-los; a máquina que os governa exige resposta presta e exata: não há o que sentir. Os princípios de humanidade, ou suas atitudes moribundas, remanescentes, são subjugadas todos os dias pela concorrência entre os homens que comem o pão de cada dia e não notam que consomem muito mais que isso; a escatologia humana é o prato consumido sem sal e os que se servem não sentem o sabor amargo da comida.

    Os conceitos que regem o homem do novo século são outros e os princípios do homem natural, pintado por filósofos da Ilustração, são projetos demasiadamente utópicos, cujo escopo tem-se distanciado da realidade gerida pelo capital. O homem, hoje, é vítima de si mesmo e o seu lema é o individualismo. De toda essa conjuntura social, o que mais me assusta é a dormência da sociedade diante dessa situação programada, mecânica, em que o homem mais parece uma peça de jogo de xadrez. Posto que os princípios naturais do ser humano não se mostrem com a devida freqüência nos dias de hoje, a situação não se limita à morosidade social e, pior, há, em verdade, uma inversão de conceitos: o bizarro, por exemplo, não mais choca o indivíduo acostumado a cenas de depravação humana e olvidado do conceito de beleza.

    A violência, sob as suas diversas faces, aparece-nos diariamente na televisão, no trajeto dos que vão trabalhar e até no mundo bem pintado, sem máculas, das crianças que são vítimas de sua inocência. A corrupção, não só a sua versão mais ventilada, que é a política, senão em sentido amplo, colabora, quando bem calada, com a banalização da violência, tornando o incidente escatológico um fato corriqueiro.

    O cenário de uma sociedade corrompida é o fruto mais devastador de causas que nos remetem à origem da dominação entre os homens, um traço obscuro da nossa história cuja determinação não é pontual e está longe de ser clara. A análise superficial da sociedade em que vivemos ilude os muitos que tomam o bonde para seguir o jogo cujo fim é determinado antes mesmo de a partida começar e, junto à cacotanásia diária que passa despercebida aos olhos de tantos, representa o contraste dos extremos de uma só paisagem: a exaustão da humanidade e de seus princípios.

(por Gustavo Henrique S. A. Luna)

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Gramática: a palavra "que".

Perguntaram, por fim, a distinção entre as classificações da palavra que, assunto interessante e que nos permite uma viagem de extenso itinerário à morfologia e à sintaxe. Tentei responder concisamente, o que foi inútil, posto que tal assunto nos exige a paciência de apreciar a versatilidade de um vocábulo formalmente tão pequeno, mas que se mostra imenso na frase, guiando-nos por diversos caminhos e mostrando-nos alguns segredos da língua, pontos turísticos que são as formas vívidas de expressão de tal palavrinha. Eis então a minha resposta:

Olá, ***. A distinção entre as várias classificações que o que pode assumir na oração torna-se clara quando observamos as palavras e a pontuação a ele associadas. Ele pode ser:

1.º - Substantivo

Nesse caso, ele geralmente vem precedido de artigo e, por ser vocábulo monossílabo tônico, é sempre acentuado. Ex.:

"Meu bem-querer tem um quê de pecado..." (Djavan)
Ela nos mostrou um quê de insatisfação.
Encontre todos os quês do texto.

2.º - Interjeição

Como toda interjeição, exprime sentimento e representa uma frase implícita. Sempre leva acento gráfico, pelo mesmo motivo do substantivo homônimo. Ex.:

Quê! Não acredito que eles fizeram isso!

3.º - Advérbio de intensidade

Modifica o adjetivo ou outro advérbio, equivalendo à palavra quão. Ex.:

Que bom revê-lo, Joaquim!
Que bonita é aquela moça!

4.º - Pronome adjetivo

Sempre acompanha o substantivo. Ex.:

Que casa compraste recentemente? (pronome adjetivo interrogativo)
Que idéia de jerico! (pronome adjetivo exclamativo)
Não sei que livro devo comprar. (pronome adjetivo indefinido)

5.º - Pronome substantivo

Assume o lugar do substantivo na frase e, se vier em final desta, será proferido tonicamente, levando acento pelo mesmo motivo do substantivo e da interjeição.

Que te fez mal ontem à noite? (pronome substantivo interrogativo)
Joana me disse não sei o quê. (pronome substantivo indefinido)

6.º - Pronome relativo

Substitui substantivo ou pronome substantivo, exercendo diversas funções sintáticas. Pode-se construir, à parte, uma oração elucidativa dessa substituição; por exemplo, em "A árvore que dava muitos frutos sucumbiu", pode-se notar que o que exerce função de sujeito da oração adjetiva restritiva que dava muitos frutos e, à parte, por motivo de melhor compreensão de que o substantivo árvore é substituído pelo que, poderíamos escrever a seguinte oração: A árvore dava muitos frutos. Ex.:

A pitombeira que está perto da praça municipal dá muitos frutos. (que = sujeito de está)
"O melhor retrato de cada um é aquilo que escreve." (que = objeto direto de escreve)
Luiz Gonzaga é o nordestino de que sou fã. (de que = complemento nominal do substantivo predicativo )

Obs.: O relativo que também aparece determinando o pronome substantivo demonstrativo neutro o, quando este funciona como aposto na oração. Ex.: Choveu muito, o que não é bom para a corrida automobilística. (o demonstrativo vicário o funciona como aposto e poderia ser substituído por substantivo como fato ou coisa; que funciona como sujeito da oração adjetiva ulterior)

7.º - Conjunção coordenativa

Liga orações que são independentes sintaticamente. É importante notar o fato de que, algumas vezes, a palavra que vem após vírgula, não possui referente substantivo anafórico nem se enquadra em nenhuma das outras classificações supracitadas; o que é indício prático de que se trata de uma conjunção coordenativa adversativa, explicativa ou alternativa correlativa. Ex.:

"Culpe-os, que não a mim!" (que = mas; portanto, adversativa)
Chupa esse picolé, que ele é de uva. (que = pois; é, portanto, explicativa)
Que chova, que faça sol, casarei amanhã, dia 30 de fevereiro. (que... que = ou... ou; conjunção coordenativa alternativa correlativa)

8.º - Conjunção subordinativa

Liga orações que são dependentes sintaticamente. Ex.:

O importante é que consegui um bom emprego e tenho saúde. (conjunção subordinativa integrante)
Dizem que um jogador de futebol famoso se deu mal com travestis.
Agora que nos vamos casar, cai este pé-d'água! (conjunção subordinativa temporal)
Falou tanto, que parecia ter tomado água de chocalho. (conjunção subordinativa consecutiva)
Vou cuspir no chão e espero que você volte antes de o cuspe secar. (conjunção subordinativa integrante)
Samarica parteira gritava mais que a parturiente. (conjunção subordinativa comparativa).

9.º - Palavra expletiva ou de realce

Pode ser removida da oração sem prejuízo algum da mensagem. Ex.:

Quase que quebrei a perna quando praticava "Le Parkour".
Nunca que eu praticaria algo que colocasse minha saúde em risco.
Que felizes que eram aqueles dois na flor da mocidade.
Obviamente que não tentei a asneira de escalar o muro para pegar jambo; não pularia, portanto, sem motivo algum.

Atenção à locução expletiva é que, quando aparece em conjunto antes do verbo principal da oração. Essa locução é diferente da também expletiva locução do tipo verbo ser + sujeito + que + verbo principal (sou eu que pratico judô todos os dias = eu pratico judô todos os dias). Apesar de ambas serem expletivas, podendo ser retiradas da oração, elas enfatizam a ação do verbo principal, conferindo-lhe mais destaque. Ex.:

Eu é que não pratico as estripulias de meu sobrinho: ficar escalando tudo o que vê.
Foram nossos pais que enfrentaram a viperina ditadura militar: 21 anos de sofrimento, medo e governança inepta.
Joaquim é que não temia cara feia, enfrentou o valetão dizendo que a gravata de bolinhas amarelas era horrível.

10.º - Preposição

Pode ser substituída pela preposição de.

Primeiro que tudo é preciso muito estudo para ser aprovado no vestibular.

A palavra que também aparece como preposição na locução verbal ter + que + verbo no infinitivo. Questão polêmica é a distinção entre ter que e ter de. Já li em algumas apostilas uma distinção sem fundamento algum, que afirmava que ter de distingue-se da outra expressão por indicar obrigação, o que, segundo essas apostilas, ter que não faria. Outros autores são mais maleáveis e afirmam que não há distinção alguma, podendo-se usar tanto uma quanto outra. A distinção mais interessante e que considero mais coerente e acertada foi escrita pelo célebre prof. Paulo Hernandes. Ele diz que a Gramática tradicional afirma que em ter que, além da idéia de obrigatoriedade, há, em verdade, um pronome relativo representado pela palavra que e a idéia subentendida do pronome indefinido muito, o próprio escrito realmente (tenho muito que estudar) ou omitido por conta de ele ser facilmente reconhecido como referente no contexto. Ele afirma que a Gramática tradicional recomenda ainda que, se o que não tem antecedente com o qual se relacionar, não é apropriado o uso de tal palavra e ela deve, portanto, ser substituída pela preposição de. Para saberes mais, consulta a página do professor: dica n.º 114.

Isso é tudo que posso falar sobre as diversas classificações da palavra que. Um abraço, e até outros tópicos.

"Contículo": Saiu do milharal ou da cabeça?

fonte da fotografia: masterkitchen.com.br

Saiu dali, do milharal, a delícia que lhe constrói a carreira. O menino corre como quem foge de bicho bruto, leva um tombo daqueles e bate a cara no calçamento. Oito pontos na testa! Preço de pouco juízo e de muita vontade de comer aquele manzape da mamãe.

Presenciou toda a cena outro moleque ainda mais desajuizado, que soltou a gargalhada mais daninha por conta da queda do esfaimado. Ah! Infeliz! Assustou-se, porém, quando o menino levantou a face ensangüentada. O gaiato que mangara do tombo ficou branco como burro que foge e entrou espavorido na casa dos pais do menino gritando que o pobre danado estava morrendo, perdendo muito sangue (ah! "fi' d'uma égua exagerado!")

Pronto! Levaram o abestalhado para o hospital. Foi bufando, porquanto não comera sequer a menor das fatias daquele manzape cheiroso.

(por Gustavo Henrique S. A. Luna)

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Poesia: algumas poesias de Augusto dos Anjos.

 

VERSOS ÍNTIMOS

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão -- esta pantera --Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável, 
Mora, entre feras, sente invevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
o beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga, 
Escarra nessa boca que te beija!

 

A DANÇA DA PSIQUE

O POETA DO HEDIONDO

A dança dos encéfalos acesos
Começa. A carne é fogo, A alma arde, A espaços
As cabeças, as mãos, os pés e os braços
Tombam, cedendo à ação de ignotos pesos!

É então que a vaga dos instintos presos
-- Mãe de esterilidades e cansaços --
Atira os pensamentos mais devassos
Contra os ossos cranianos indefesos.

Subitamente a cerebral coréia
Pára. O cosmos sintético da Idéia
Surge. Emoções extraordinárias sinto.

Arranco do meu crânio as nebulosas
E acho um feixe de forças prodigiosas
Sustentando dois monstros: a alma e o instinto!

 

Sofro aceleradíssimas pancadas
No coração. Ataca-me a existência
A mortificadora coalescência
Das desgraças humanas congregadas!

Em alucinatórias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciência
A ultra-inquisitorial clarividência
De todas as neuronas acordadas!

Quanto me dói no cérebro esta sonda!
Ah! Certamente eu sou a mais hedionda
Generalização do Desconforto...

Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!

MINHA FINALIDADE

VÍTIMA DO DUALISMO

Turbilhão teleolófico incoercível,
Que força alguma inibitória acalma,
Levou-me o crânio e pôs-lhe dentro a palma
Dos que amam apreender o Inapreensível!

Predeterminação imprescriptivel
Oriunda da infra-astral Substância calma
Plasmou, aparelhou, talhou minha alma
Para cantar de preferência o Horrível!

Na canonização emocionante,
Da dor humana, sou maior que Dante,
-- A águia dos latifúndios florentinos!

Sistematizo, suluçando, o Inferno...
E trago em mim, num sincronismo eterno
A fórmula de todos os destinos!

 

Ser miserável dentre os miseráveis
-- Carrego em minhas células sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
E as mais opostas idiosincrasias!

Muito mais cedo do que o imagináveis
Eis-vos, minha alma, enfim, dada às bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
E à gula negra das antinomias!

Psique biforme, o Céu e o Inferno absorvo...
Criação a um tempo escura e cor-de-rosa,
Feita dos mais variáveis elementos,

Ceva-se em minha carne, como um corvo,
A simultaneidade ultramonstruosa
De todos os contrastes famulentos!

A UM EPILÉPTICO

IDEALISMO

Perguntarás quem sou?! -- ao suor que te unta,
À dor que os queixos te arrebenta, aos trismos
Da epilepsia horrenda, e nos abismos
Ninguém responderá tua pergunta!

Reclamada por negros magnetismos
Tua cabeça há de cair, defunta
Na aterradora operação conjunta
Da tarefa animal dos organismos!

Mas após o antropófago alambique
Em que é mister todo o teu corpo fique
Reduzido a excreções de sânie e lodo,

Como a luz que arde, virgem, num monturo,
Tu hás de entrar completamente puro
Para a circulação do Grande Todo!

 

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isso que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor quea Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaíra,
De Messalina e de Sardanapalo?!

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
-- Alavanca desviada do seu futuro --

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

VANDALISMO

BUDISMO MODERNO

Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.

Com os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!

 

Tome, Dr., esta tesoura, e...corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!

Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

PECADORA

A IDÉIA

Tinha no olhar cetíneo, aveludado,
A chama cruel que arrasta os corações,
Os seios rijos eram dois brasões
Onde fulgia o simb’lo do Pecado.

Bela, divina, o porte emoldurado
No mármore sublime dos contornos,
Os seios brancos, palpitantes, mornos,
Dançavam-lhe no colo perfumado.

No entanto, esta mulher de grã beleza,
Moldada pela mão da Natureza,
Tornou-se a pecadora vil. Do fado,

Do destino fatal, presa, morria
Uma noute entre as vascas da agonia
Tendo no corpo o verme do pecado!

De onde ela vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica...

Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!

 

O MORCEGO

PSICOLOGIA DE UM VENCIDO

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica dasede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

“Vou mandar levantar outra parede...”
-- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Produndissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme -- este operário das ruínas --
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

(fonte: poesias extraídas do livro "Eu e outras poesias", 42.ª ed., Editora Civilização Brasileira - Rio de Janeiro, 1998.)

Faces, a expressão da alma

Faces, a expressão da alma
Resultados recentes mostram como nosso cérebro reconhece rostos

Quadro do pintor surrealista belga René Magritte (1898-1967): Retrato de Edward James (a reprodução proibida).

O jornalista aposentado Masao Kasai (nome fictício) acordou de manhã, olhou-se no espelho e não se reconheceu refletido. Quem era aquela pessoa? Não identificou a própria face, embora a visse claramente e percebesse que se tratava de um homem oriental, com cerca de 70 anos, dotado de traços que julgava familiares. Andou pela casa e notou que tudo estava normal – todos os objetos em seus lugares. Pensou disciplinadamente no dia anterior e constatou que podia se lembrar de tudo. Aí ouviu a voz de sua mulher no quarto, foi até ela, mas ao encontrá-la... não reconheceu o rosto que estava à sua frente. Algo estava errado. Decidiu procurar um hospital.

De fato, os médicos do Hospital Tenri, em Nara (Japão), constataram que Masao havia sofrido um derrame durante a noite, perdendo a capacidade de reconhecer faces familiares, mas sem apresentar outro sintoma cognitivo digno de nota. Casos semelhantes de prosopagnosia já eram conhecidos da neurologia, e essa condição foi imortalizada por Oliver Sacks em O homem que confundiu sua mulher com um chapéu . Mas o infortúnio de Masao, relatado em 2001 pelos neurologistas Y. Wada e T. Yamamoto, apresentou uma característica importante que acabou se tornando útil para decifrar de que modo somos capazes de reconhecer tão pronta e facilmente, pela face, as pessoas próximas e as pessoas famosas. É que a hemorragia cerebral que atingiu Masao praticamente restringiu-se a um setor específico do córtex cerebral chamado área fusiforme, e limitou-se ao lado direito do cérebro.

Essa região do córtex cerebral já havia sido estudada há mais de 30 anos em macacos, pioneiramente, pelo brasileiro Carlos Eduardo Rocha-Miranda, que nessa época fazia parte de um grupo de neurocientistas da Universidade Harvard, nos EUA. O grupo havia conseguido identificar neurônios isolados nessa região da parte inferior do córtex cerebral, ativados por estímulos complexos como mãos e faces.

Rocha-Miranda conta, aliás, que tudo ocorreu por acaso, quando um dos pesquisadores passou pela frente do macaco e inadvertidamente ativou um desses neurônios. Passou de novo, e o neurônio sinalizou outra vez. Várias tentativas foram feitas até que o grupo descobriu que o alvo da preferência daquele neurônio em particular era a mão que passava pelo campo visual do animal.

Mãos, faces, objetos complexos – então temos neurônios assim tão especializados? Haveria algum neurônio em nosso cérebro capaz de reconhecer especificamente nosso próprio rosto, o de nossa avó? A discussão que se seguiu a esse trabalho foi intensa, pois era difícil aceitar que poucas células nervosas – chamadas neurônios gnósticos , os “neurônios do conhecimento” – fossem capazes de tamanha especialização.

Os códigos da percepção
A representação de objetos complexos no cérebro – não apenas faces – pode empregar códigos ditos esparsos , quando todo o objeto é codificado por poucos neurônios (um só, no limite); ou códigos populacionais , quando um grande número de neurônios contribui para o reconhecimento do objeto. E ainda: esparsos ou populacionais, esses códigos podem estar agregados em um mesmo setor do cérebro, ou então distribuídos por uma extensa região.

Ambos os códigos têm sido repetidamente descobertos no cérebro dos animais, inclusive o homem: neurônios específicos para o canto da espécie, nos canários, são um exemplo de código esparso bem conhecido. Já o comando dos movimentos precisamente direcionados que os macacos conseguem realizar depende da combinação de muitos neurônios motores ativos, o que é um exemplo de código populacional.

No caso da percepção de faces, os neurônios especializados foram identificados por diversos pesquisadores, sendo assim bem aceitos como uma realidade. Faltava saber duas coisas importantes. Estariam esses neurônios espalhados pelo córtex, ou concentrados em regiões pequenas? O código era esparso ou populacional? A questão é importante, porque neurônios agregados interagem mais facilmente, já que as distâncias são curtas. Neurônios afastados requerem conexões de longa distância, o que necessariamente implica maior lentidão no processamento.

Acima: Imagem de ressonância magnética funcional do cérebro de um macaco, em corte. Os focos amarelos são regiões ativadas por faces, e a linha vermelha representa o microeletródio que captou a atividade neuronal. O gráfico de baixo mostra a atividade neuronal média em resposta a faces e outros estímulos. Os rostos são os únicos estímulos eficazes. Adaptado de Tsao e colaboradores (2006).

O acidente vascular de Masao Kasai indicou que seria verdadeira a hipótese de existirem poucos neurônios (código esparso), mas concentrados em uma pequena região (distribuição restrita), mas a prova só veio há alguns meses, com o trabalho realizado pela equipe de Doris Tsao, da Universidade Harvard e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA.

O grupo utilizou macacos para os experimentos. Primeiro levaram os animais à máquina de ressonância magnética funcional, que permitiu localizar precisamente as regiões ativas quando eles viam faces de outros macacos, ou mesmo de seres humanos. Descobriram três focos em uma região do lobo temporal, o mesmo que havia sido danificado no cérebro do jornalista japonês. A seguir empregaram microeletródios para captar a atividade de neurônios individuais em um desses focos, e o que encontraram foi surpreendente: praticamente todos os neurônios do foco (97%!) respondiam seletivamente a rostos.

Um dado adicional foi relevante no trabalho do grupo americano: a maioria dos neurônios respondia a muitas faces diferentes, muito raramente a uma ou duas apenas. Isso pode significar que não há neurônios isolados especializados na cara da vovó ou da mamãe, e que o reconhecimento desses rostos familiares pode ser obtido pela coordenação das respostas de conjuntos de neurônios especializados em faces. Justamente isso – a cooperação entre os neurônios seletivos a rostos – seria mais eficiente com uma distribuição agregada, que foi exatamente o que os pesquisadores encontraram.

René Magritte, o pintor surrealista belga que tão criativamente representou a nossa percepção das faces, intuiu a importância dessa habilidade: no rosto está a nossa alma, isto é, nossa expressão, nossa emoção, nossa comunicação. Não é para menos que o cérebro dos primatas dispõe de uma área exclusiva para seu reconhecimento.

SUGESTÕES PARA LEITURA
C.G. Gross, C.E. Rocha-Miranda e D. Bender (1972) Visual properties of neurons in inferotemporal cortex of the macaque. Journal of Neurophysiology , vol. 35, pp. 96-111.
O. Sacks (1999) O homem que confundiu a sua mulher com um chapéu . São Paulo: Companhia das Letras.
Y. Wada e T. Yamamoto (2001) Selective impairment of face recognition due to a haematoma restricted to the right fusiform and lateral occipital region. Journal of Neurology, Neurosurgery and Psychiatry , vol. 71, pp. 254-257.
L. Reddy e N. Kanwischer (2006) Coding of visual objects in the ventral stream. Current Opinion in Neurobiology , vol. 16, pp. 408-414.
D.Y. Tsao e colaboradores (2006) A cortical region consisting entirely of face-selective cells. Science , vol. 311, pp. 670-674.

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
27/04/2007

(fonte: cienciahoje.uol.com.br)

Gramática: o verbo fazer, unipessoal ou impessoal?

Há uma figurinha repetida no fórum SOLP: a questão que trata do verbo fazer em orações que dão idéia de tempo. Trato, explicitamente, de expor o que pensam alguns acerca da possível unipessoalidade de tal verbo, sempre relevando o que pensa a maioria dos gramáticos sobre tal caso. Foram duas dúvidas bastante pertinentes que me fizeram escrever sobre a coerente, apesar de bastante incomum nesse caso, unipessoalidade. Cá estão as  perguntas e as respostas:

Faz duas horas que espero por você
Alguém poderia me ajudar? Qual seria a função sintática de que espero por você?

Olá, ***. Essa tua pergunta é bem pertinente, porque ela ainda gera um pouco de polêmica. Eu disse, certa vez, neste fórum que, em orações nas quais aparece o verbo fazer, em acepção de tempo decorrido, o sujeito seria considerado unipessoal por alguns gramáticos, em vez de impessoal. Ex.: Faz dez anos que deixei de beber (suj.: que deixei de beber). Esse raciocínio, apesar de coerente, é um pouco radical, pois a maioria dos bons gramáticos consideram que haja, em verdade, uma oração sem sujeito e que o verbo seja, portanto, impessoal. Tomando como mais apropriado o que dizem esses bons gramáticos, a oração que espero por você de tua citação seria tão-só a oração principal do período composto por subordinação. Outro detalhe que devo salientar é que o verbo esperar, em acepção de estar à espera de alguém ou de algo, não é transitivo indireto, e sim direto. A tua frase seria, portanto, melhor escrita assim: Faz duas horas que espero você. Desse modo, o termo você seria o objeto direto do verbo esperar. Isso é tudo que tenho a dizer. Um abraço, e até outros tópicos.

Em outro tópico, foi melhor explicado o caso em que o verbo fazer, em acepção de tempo decorrido, pode ser visto como unipessoal, mesmo que, torno a lembrar, seja encarado como impessoal por grande parte dos gramáticos. Apesar de a questão do referido tópico ser outra, nele acabo explicando a interpretação da unipessoalidade de tal verbo. Cá está o tópico a que me refiro:

Olá, ***. Vou-te explicar melhor a flexão verbal quando ocorre sujeito oracional. Antes de tudo, verbo unipessoal é aquele que, tendo sujeito, só se usa nas terceiras pessoas, do singular e do plural. Exemplo claro da unipessoalidade verbal são os verbos onomatopaicos: grunir, miar, latir, etc. O verbo também é unipessoal quando ocorre sujeito oracional. Ex.: Convém que voltemos cedo (suj.: que voltemos cedo). Alguns gramáticos consideram o verbo fazer, referindo-se a tempo, como unipessoal; outros o consideram impessoal. Em provas de concursos e vestibulares, deve-se considerá-lo impessoal, apesar de tal discussão. É importante apenas que se note a justificativa daqueles que o vêem unipessoal: eles afirmam que a oração principal do período tem como sujeito a oração subordinada substantiva introduzida, como é de nosso conhecimento, por conjunção integrante que. Ex.: Faz dez anos que Juninho comprou sua bicicleta. (verbo unipessoal: faz; sujeito oracional: que Juninho comprou sua bicicleta). Há equivalência elucidativa com a oração assim reconstruída, substituindo o sujeito oracional pelo pronome substantivo demonstrativo neutro isso: Faz dez anos isso. O gramático que afirma categoricamente a unipessoalidade do verbo fazer é Sacconi, considerado por muitos como radical, por não concordar com algumas posições da NGB. Vejamos o que afirma em uma nota de observação contida em sua gramática Nossa Gramática - Teoria e Prática:

 

1) Consideramos unipessoal, e não impessoal, o verbo fazer seguido da oração iniciada pela conjunção que, a nosso ver integrante. A NGB não trata dos verbos unipessoais, considerando todos os verbos só usados nas terceiras pessoas como impessoais, incorrendo num equívoco imperdoável.

 

Na frase Faz dez anos que deixei de fumar, a oração iniciada pelo conectivo é substituível pelo pronome substantivo isso, o que comprova seu valor substantivo:

 

Faz dez anos que deixei de fumar = Faz dez anos isso.

Perguntou também o caro forista:

Pergunto, a ordem direta poderia ser escrita assim:
"Distinguir os passageiros casuais dos chamados 'ratos de metrô' é muito fácil"?

Quanto à ordem direta que me sugeriste, ela está correta, apesar de a ordem inversa (predicado nominal + suj. oracional) apresentar melhor valor enfático do predicativo do sujeito. ***, espero ter-te ajudado, um abraço deste que te escreve, e até outros tópicos.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Crônica: O fulano-de-tal que fora adotado.

   Assim pensou o fulano-de-tal, semelhante a muitos que crêem viver uma situação de equilíbrio familiar, e o registro por ele escrito é conturbado, visto que ele mesmo, em um momento, tem em si o turbilhão de pseudoconclusões e, em outro, apresenta forte atimia. A avaliação do que lhe sucedeu é feita pela corda trêmula em que se equilibram acrobatas destemidos: o Amor atrabiliário e a Razão tácita. Ela, a corda, é feita de material rijo, que sustenta as estripulias desses dois. Assim nos conta, presto, o fulano-de-tal.

    Eis uma retrospectiva de meus vinte e seis anos, tudo o que me apareceu brusco na memória após a descoberta da adoção: tive boa infância, bons amigos, boa educação e o restante do que não falta à família perfeita; uma perfeição cristalina que, porém, trincou por efeito de uma ressonância que me remete ao momento de meu tão belo rebentar, um tipo não convencional de introdução ao mundo. Preferiria crer eternamente nesse cristal imaculado, produto do medo de meus pais, mas ele, diferente dos demais, era uma pedra frágil, que teria de trincar e, de uma só vez, partir-se em milhares de pedaços, tal foi a força da notícia que me arrebatou tão-só agora, quando estava feliz por assim viver.

    Mas a notícia cruel de minha adoção renderá o final da escrita, agora é melhor tomar por base os motivos da informação tardia; o medo, sim, gerou a morosidade de meu caso e emudeceu, por todos os bons momentos que vivi, qualquer vestígio de atitude reveladora por parte dos que me mostraram o mundo. O que me pareceu límpido e majestoso pode ter sido a angústia dos que me criaram; eles, ao menos, nunca ma demonstraram. Não sei bem se cabe a mim o julgamento da "falha", pois não sei bem se a há e se ela feriria mais um adulto de boa formação ou uma criança que decerto assimilaria que a família não é uma instituição armada pela consangüinidade. Tenho em mente que não há uma fórmula para o sucesso, assim como não há uma para a felicidade, e não haveria, portanto, razão maior para o tipo especial de cisma de que tenho sofrido do que a minha progressão natural, sem choques e sem dramas. O alvo da discussão já não é o menino de ouro que fui, senão um adulto que, por meses, tem-se mostrado taciturno e conversado pouco com a tão prestativa família. Ah! Linhas que se riscam, é a minha vez de fingir! Fazer os meus mestres, que tão bem me conhecem, não notarem sequer o menor ruído de minha digestão, uma feijoada pesada que agora tem de ser degradada à surdina. Talvez seja mais difícil para mim fingir o mastigar do abalo, da nova idéia e de um pouco de desespero.

    Como toda digestão, a nutrição é certa. O resultado da força que me feriu a consciência com descomunal ferocidade, as palavras que saíram fortes e reveladoras da pequena e bem pintada boca maternal e toda a situação que daí decorreu foram a minha atual anestesia. O meu moral inquieto e preocupado com a reação de minha família por eu assim agir, meio inerte e um pouco inerme às vicissitudes, mostrou-me uma rica digestão, uma digestão de valores, modelos, fórmulas e paradigmas que me confirmou que a família não é uma instituição armada pela consangüinidade.

(por Gustavo Henrique S. A. Luna)

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Vírgulas Fatais

O VALOR DA PONTUAÇÃO

Um homem rico, sentindo-se morrer, pediu papel e pena, e escreveu assim: "Deixo os meus bens à minha irmã não a meu sobrinho jamais será paga a conta do alfaiate nada aos pobres". Não teve tempo de pontuar - e morreu.

A quem ele deixava a fortuna que tinha? Eram quatro os concorrentes.

Chegou o sobrinho e fez estas pontuações numa cópia do bilhete: "Deixo os meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho. Jamais será paga a conta do alfaiate! Nada aos pobres!"

A irmã do morto chegou em seguida, com outra cópia do escrito; e pontuou-a deste modo: "Deixo os meus bens à minha irmã. Não a meu sobrinho! Jamais será paga a conta do alfaiate! Nada aos pobres!"

Surgiu o alfaiate que, pedindo a cópia do original, fez estas pontuações: "Deixo os meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho? Jamais! Será paga a conta do alfaiate. Nada aos pobres!".

O juiz estudava o caso, quando chegaram os pobres da cidade. Um deles, mais sabido, tomando outra cópia, pontuou-a assim: "Deixo os meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho? Jamais! Será paga a conta do alfaiate? Nada! Aos pobres."

Assim é a vida, nós é que colocamos os pontos e isto faz a diferença. 

A contribuição acima é de Luiz Norberto Damiani, membro do MNDLP em Santos/SP, transcrevendo em 15/4/2000 mensagem recebida de Mário Canelas Jr.

Meu pai contava uma história assim:

Dizia que no Pará houve um levante popular. O comandante das forças armadas telegrafou ao Presidente da República relatando o fato e, no fim, perguntou - reajo ?
O Presidente respondeu assim: Não, tenha ponderações.
O telegrafista esqueceu da vírgula. Em razão disto, morreram várias pessoas.

Aristóteles

Contribuição de Aristóteles, da Paraíba, participante da lista de debates Idioma, mantida pelo MNDLP na Internet, enviada em 18/4/2000.

Reprimido versus recessão, ou a vírgula que salvou o herói

Num reino distante e antigo, uma criatura terrível ameaçava a tranqüilidade do povo. Era tão assustadora que todos começaram a chamá-la Recessão. Preocupado com os estragos que a Recessão causava ao Reino, o rei convocou Reprimido, um manjado herói, para liquidar a fera. Reprimido partiu, levando sua grande arma: o cartão de crédito. Alguns dias depois, o rei recebeu um telegrama no castelo: "A Recessão Reprimido matou". O rei ficou muito triste e decretou uma semana de luto em homenagem a Reprimido, que imaginava morto. Mas qual não foi a surpresa de todos, quando no dia seguinte Reprimido apareceu vivinho da silva. E explicou ao rei que tudo era culpa do telegrafista. Na pressa de mandar o telegrama, ele se esquecera de uma vírgula. A mensagem certa era: "A Recessão, Reprimido matou."

Extraído de "Língua não tem osso, ouvido não tem porteira, pensamento não tem fronteira", revista SuperInteressante Jovem Especial, Editora Abril, novembro de 1990.

Oráculo ambíguo -  Na antiga Grécia havia um célebre oráculo, que respondia com segurança a todas as perguntas que se lhe fizessem sobre o futuro, que para nós hoje já é passado. Um pai aflito, um dia, perguntou ao oráculo se o seu filho, que devia partir para a guerra, regressaria são e salvo.

O oráculo respondeu por escrito: "irá virá nunca morrerá nas armas".

O pai ficou satisfeitíssimo com a resposta. Mas a sua alegria não durou muito tempo. Logo depois de dois meses recebeu a dolorosa notícia da morte do filho em combate. Desesperado, foi ao oráculo, a fim de reclamar contra o engano da profecia. O oráculo lamentou muito o que havia sucedido, mas fez ver ao velho pai que nada tinha a corrigir. A sua professia estava certa e havia se cumprido. 

O que ele respondera era o seguinte: "Irá. Virá nunca. Morrerá nas armas". E não: "Irá. Virá. Nunca morrerá nas armas", como julgava o pai.

Extraído de Almanhaque para 1949 ou Almanhaque d'A Manha - Primeiro Semestre
produzido por Apparício Torelly, o Barão de Itararé (1895-1971).

Lembra, por sua vez (em 6/2/2001, na lista de debates Idioma), o internauta Luiz Ezildo: 

"Tem aquela histórinha do cartorário que escreveu a respeito de um erro e tentando consertá-lo: "...quando digo digo, não digo digo, digo Diogo ..."

Em uma lista de debates sobre negócios, a Widebiz, a internauta Márcia Gama citou, em 24/1/2001:

Dizer "Quem canta, seus males espanta" é muito diferente de dizer "Quem canta seus males, espanta". 

No dia seguinte, na mesma lista, o internauta Lucio Wandeck respondeu contando uma história:

Não sei se é verdade, mas conheço a seguinte história.

Lá pelos idos de mil oitocentos e tantos, a atual cidade de Manaus (então pertencente à Provìncia do Pará) rebelou-se contra o governo. Foram deslocados de Belem dois navios de guerra que fundearam em frente ao lugarejo. O comandante, após comprovar a insurreição - chefiada por padres - enviou mensagem à Corte: 
- Devo bombardear Manaus?
A Corte respondeu:
- Não, poupe Manaus.
Porém o telegrafista achou desnecessária a vírgula!

E há também a velha história do rei impiedoso e do escrivão clemente. Um desafeto político do rei estava preso, aguardando a sentença do rei. Perguntou-se ao soberano se o condenado poderia contar com a bondade real. Respondeu o rei: "Não, mate!" Mas o esperto escrivão retirou a vírgula no documento que levou à assinatura do soberano. Assim, a ordem que os guardas receberam foi: "Não mate!". E o prisioneiro foi salvo...

(fonte: http://www.novomilenio.inf.br/idioma/20010302.htm - Movimento Nacional em Defesa da Língua Portuguesa)

sábado, 12 de abril de 2008

Gramática: diferença entre adjunto adnominal e complemento nominal.

Uma das dúvidas mais comuns em análise sintática é a relativa à distinção entre adjunto adnominal e complemento nominal. Perdi a conta de quantas vezes já se perguntou isso aos diversos professores de Gramática de Português que tive. A dúvida é, sim, justa, pois a diferença é realmente sutil e exige do estudante mais atenção. Finalmente, no utilíssimo fórum SOLP, chegou a bendita questão, e prontamente, até por identificação com tal questionamento, tratei de responder a ela. Cá está o tópico:

Alguém sabe bem resumidamente a diferença entre adj. adnominal e compl. nominal?

Olá, ***. Excelente, tua pergunta. Essa é uma das questões mais comentadas de toda a sintaxe. Inicialmente, faremos a distinção em relação aos termos que regem um e outro. Se o termo regido por preposição estiver ligado a advérbio ou a adjetivo, será sempre complemento nominal. Ex.: temeroso da derrota; longe dos amigos; cheio de tralhas, independentemente de sua ordem. A atenção deve ser máxima quando o regente for um substantivo, pois assim poderemos ter um adjunto adnominal ou um complemento nominal. Se o substantivo for concreto, teremos adjunto adnominal. Ex.: casa de taipa; pano de seda, etc. Se ele for abstrato, teremos de analisar desta forma: tendo o termo regido aspecto passivo em relação à ação contida no nome (sim, os substantivos abstratos possuem verbos correspondentes: ataque - atacar, pedido - pedir, caça - caçar, desgaste - desgastar, abalo - abalar, castigo - castigar, etc.; são, portanto, deverbais, ou seja, sofreram processo de formação denominado derivação regressiva), ele será complemento nominal. Ex.: pedido de ajuda: ajuda foi pedida; necessidade de comida: comida é necessitada. Será mais elucidativo se usarmos como exemplo uma oração, por exemplo: Clementina nunca relevou sua necessidade da paz celeste (Clementina necessita a paz celeste; a paz celeste é necessitada por Clementina). "O complemento nominal corresponde a um complemento objetivo" (Luiz Antonio Sacconi, Nossa Gramática - Teoria e Prática, 23.ª edição, pág. 321). O adjunto adnominal possui sentido ativo acerca da ação contida no substantivo. Ex.: "A redação do rapaz" (o rapaz redigiu a redação; a redação é sua); "A explicação do professor" (o professor explicou; a explicação é dele); enquanto que, em "A redação das revistas", temos complemento nominal (As revistas são redigidas; alguém redige as revistas). "O adjunto adnominal corresponde a um complemento subjetivo" (Luiz Antonio Sacconi, Nossa Gramática - Teoria e Prática, 23.ª edição, pág. 321). ***, espero ter-te ajudado. Um abraço, e até outros tópicos.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Crônica: O Festival de Besteira Que Assola o País.

O Festival de Besteira Que Assola o País

Stanislaw Ponte Preta
(Sérgio Porto)

Disse Stanislaw no FEBEAPA 2:

"É difícil ao historiador precisar o dia em que o Festival de Besteira começou a assolar o País. Pouco depois da "redentora", cocorocas de diversas classes sociais e algumas autoridades que geralmente se dizem "otoridades", sentindo a oportunidade de aparecer, já que a "redentora", entre outras coisas, incentivou a política do dedurismo (corruptela de dedo-durismo, isto é, a arte de apontar com o dedo um colega, um vizinho, o próximo enfim, como corrupto ou subversivo — alguns apontavam dois dedos duros, para ambas as coisas), iniciaram essa feia prática, advindo daí cada besteira que eu vou te contar".

Vamos a algumas amostras:

"O mal do Brasil é ter sido descoberto por estrangeiros" (Deputado Índio do Brasil, Assembléia do Rio).

O cidadão Aírton Gomes de Araújo, natural de Brejo Santo, no Ceará, era preso pelo 23.º Batalhão de Caçadores, acusado de ter ofendido "um símbolo nacional", só porque disse que o pescoço do Marechal Castelo Branco parecia pescoço de tartaruga e logo depois desagravava o dito símbolo, quando declarava que não era o pescoço de S. Exa. que parecia com o da tartaruga: o da tartaruga é que parecia com o de S. Exa.

Cerca de 51 bandeiras dos países que mantêm relação com o Brasil foram colocadas no Aeroporto de Congonhas. O Secretário de Turismo de São Paulo — Deputado Orlando Zancaner — quando inaugurou a ala das bandeiras, disse que "era para incrementar o turismo externo".

Quando a Censura Federal proibiu em Brasília a encenação da peça Um Bonde Chamado Desejo, a atriz Maria Fernanda foi procurar o Deputado Ernani Sátiro para que o mesmo agisse em defesa da classe teatral. Lá pelas tantas, a atriz deu um grito de "viva a Democracia". O senhor Ernani Sátiro na mesma hora retrucou: "Insulto eu não tolero".

O Diário Oficial publica "Disposições de Seguros Privados" e mete lá:   "O Superintendente de Seguros Privados, no uso de suas atribuições, resolve (...), "Cláusula 2 — Outros riscos cobertos — O suicídio e tentativa de suicídio — voluntário ou involuntário".

Em Niterói o professor Carlos Roberto Borba iniciou ação de desquite contra a professora Eneida Borba, alegando que sua esposa não lhe dá a menor atenção e recebe mal seus carinhos quando é hora de programas de Roberto Carlos na televisão. A professora vai aprender que mais vale um Carlos Roberto ao vivo que um Roberto Carlos no vídeo.

Colhemos num coleguinha do Jornal do Brasil:
"O General José Horácio da Cunha Garcia fez uma firme apologia da Revolução e manifestou-se contrariamente às teses de pacificação, bem como condenou o abrandamento da ação revolucionária. O conferencista foi aplaudido de pé". O distraído Rosamundo leu e, na sua proverbial vaguidão, comentou: "Não seria mais distinto se aplaudissem com as mãos?".

Enquanto o Marechal Presidente declarava que em hipótese alguma permitiria fosse alterada a ordem democrática por estudantes totalitários, insuflados por comunistas notórios, quem passasse pela Cinelândia no dia 1.º de abril depararia com o prédio da assembléia Legislativa totalmente cercado por tropas da Polícia Militar. Na certa, a separação de poderes, prevista na Constituição, passará a ser feita com cordão de isolamento e muita cacetada.

Notícia publicada pelo jornal O Povo, de Fortaleza (CE): "O Dr. Josias Correia Barbosa, advogado e professor, esteve à beira de um IPM (Inquérito Policial Militar) por haver passado um telegrama para sua sobrinha Loberi, em Salvador, comunicando-lhe que a bicicleta e as pitombas tinham seguido. Houve diligencias pelas vizinhanças, parentes foram procurados e outras providências tomadas. Passados dois dias, soube o Dr. Josias que o despacho telegráfico não fora transmitido porque um James Bond do DCT (Departamento de Correios e Telégrafos) estranhara os termos "bicicleta", "pitombas" e "Loberi", que "deviam ser de um código secreto".

"Os jornalistas deveriam apanhar da polícia não só durante a passeata, mas antes também. Eles são incapazes de reconhecer o valor da polícia. Os fotógrafos, por exemplo, nunca fotografam os estudantes batendo no policial". Essa declaração foi feita pelo Secretário de Segurança de Minas Gerais, coronel Joaquim Gonçalves.

A peça "Liberdade, Liberdade" estreou em Belo Horizonte e a Censura cortou apenas a palavra prostituta, substituindo-a pela expressão: "Mulher de vida fácil", o que, na atual conjuntura, nos parece um tanto difícil. Ninguém mais tá levando vida fácil.

Segundo Tia Zulmira "o policial é sempre suspeito" e — por isso mesmo — a Polícia de Mato Grosso não é nem mais nem menos brilhante do que as outras polícias. Tanto assim que um delegado de lá, terminou seu relatório sobre um crime político, com estas palavras: "A vítima foi encontrada às margens do riu sucuriu, retalhada em 4 pedaços, com os membros separados do tronco, dentro de um saco de aniagem, amarrado e atado a uma pesada pedra. Ao que tudo indica, parece afastada a hipótese de suicídio".

Em Campos (RJ) ocorria um fato espantoso: a Associação Comercial da cidade organizou um júri simbólico de Adolph Hitler, sob o patrocínio do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito. Ao final do julgamento Hitler foi absolvido.

A mini-saia era lançada no Rio e execrada em Belo Horizonte, onde o Delegado de Costumes (inclusive costumes femininos), declarava aos jornais que prenderia o costureiro francês Pierre Cardin (bicharoca parisiense responsável pelo referido lançamento), caso aparecesse na capital mineira "para dar espetáculos obscenos, com seus vestidos decotados e saias curtas". E acrescentava furioso: "A tradição de moral e pudor dos mineiros será preservada sempre". Toda essa cocorocada iria influenciar um deputado estadual de lá — Lourival Pereira da Silva — que fez um discurso na Câmara sobre o tema "Ninguém levantará a saia da Mulher Mineira".

Em Brasília, depois de um dos maiores movimentos do Festival de Besteira, que bagunçou a Universidade local, o Reitor Laerte Ramos — figurinha que ama tanto uma marafa que cachaça no Distrito Federal passou a se chamar "Reitor" — nomeava um professor para a cadeira de Direito Penal.  O ilustre lente nomeado começou com estas palavras a sua primeira aula: "A ciência do Direito é aquela que estuda o Direito".

A Igreja se pronunciou, através da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, sobre recentes publicações pretensamente científicas, "que abordam problemas relacionados ao sexo com evidente abuso". O documento não explicou se o abuso era do problema ou se o abuso era do sexo. Em compensação, nessa mesma conferência, Dom José Delgado, Arcebispo de Fortaleza, dava entrevista à Agência Meridional sobre pílulas anticoncepcionais, uma pílula formidável para fazer efeito no Festival de Besteira. Como se disse bobagem sobre o uso ou não da pílula, meus Deus!!! Dom Delgado, por exemplo, dizia: "A protelação do casamento é a única conclusão a que chego, atualmente, para a planificação da família e o controle da natalidade. E, depois disso, só existe um caminho seguro: o da continência na vida conjugal". Como vêem, o piedoso sacerdote era um bocado radical e queria acabar com a alegria do pobre. Ainda mais, falando em sexo e em continência na vida conjugal, deixou muito cocoroca achando que, dali por diante, era preciso bater continência para o sexo também.

Textos extraídos dos livros "O Festival de Besteira que Assola o País", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1966, "2.º Festival de Besteira que Assola o País", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1967, e "Na Terra do Crioulo (A máquina de fazer) Doido - FEBEAPA 3", Editora Sabiá - Rio de Janeiro,  1968, págs. diversas.

(fonte: releituras.com)

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Crônica: Sou um pé. E você quem é?

    Em minha denotação, não sou alvo de atenção alguma. Tenho como fiel companhia os sapatos surrados de meu dono, que por desleixo já me deixou entregue a micoses terríveis. Em momentos de lazer, encontro o azulejo frio do terraço da propriedade do que me guia (ou será eu quem o guio?) e lá entro a pensar sobre o nome que me deram: penso muito sobre quão útil sou e quão útil é o meu nome, visto que esse momento é o único em que não transporto o meu dono; ele senta-se em uma vasta poltrona e espalha-me sobre o chão. Não me gabo por suportar o peso e até as mágoas do homem hodierno, senão o faço por conta do nome que me dão: uma palavra tão poderosa, cheia de significados, um termo que vai muito além do que posso imaginar.

    Ferretearam-me, desde que me entendo por pé, a minha definição primeira, o verbete contido nos bons dicionários; sim, sou uma mera estrutura anatômica, mas o meu nome, não. Ele pode ser um dos produtos mais emblemáticos da criatividade de um povo que sabe cuidar bem de sua língua, conferindo-lhe o mais puro teor vernáculo. O Brasil, terra que piso com gosto, e seus bons falantes, aos quais adquiri profunda admiração, revelaram-me a riqueza que constitui o idioma que falam, um ouro resultante da mistura de termos indígenas, africanos, lusitanos e de tantas outras origens, que tão-só valem ao preencher uma lacuna de nosso léxico, fato raro devido à diversidade lingüística que o erige.

    Mas voltemos ao meu nome (empolgo-me quando trato da língua dos homens)! Ele é alvo constante da bendita catacrese, que é condenada por muitos gramatiqueiros que seguem o Beletrismo e afirmam-na como metáfora desgastada, sem muita criatividade. Ora! Muito deles condenam o uso de tal recurso baseados no fato de que o vício reside na impropriedade etimológica e valem-se desses casos pouco importantes, em que o étimo da palavra é realmente corrompido, para rechaçar o recurso real das palavras presente na boa e criativa catacrese. As palavras "terraço" e "azulejo", presentes no início deste texto, já foram até crucificadas por esses maus cultivadores da língua, que as julgaram tão-só presas ao substantivo "terra" e ao adjetivo "azul", respectivamente; assim revelam desconhecer os seus étimos verdadeiros, residentes no francês (terrasse) e no árabe (zuleij). Então, é melhor que não me venham esses mal letrados condenar o nome que tenho e de que tanto me orgulho. Dos pés que chutam aos pés de laranja, pitomba, abacate, etc., sou, junto ao meu nome, cheio de riquezas.

(por Gustavo Henrique S. A. Luna)

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.