segunda-feira, 31 de março de 2008

Crônica: História de um Nome.

História de um Nome

Stanislaw Ponte Preta
(Sérgio Porto)

No capítulo dos nomes difíceis têm acontecido coisas das mais pitorescas. Ou é um camarada chamado Mimoso, que tem físico de mastodonte, ou é um sujeito fraquinho e insignificante chamado Hércules. Os nomes difíceis, principalmente os nomes tirados de adjetivos condizentes com seus portadores, são raríssimos, e é por isso que minha avó a paterna - dizia:

— Gente honesta, se for homem deve ser José, se for mulher, deve ser Maria!

É verdade que Vovó não tinha nada contra os joões, paulos, mários, odetes e — vá lá — fidélis. A sua implicância era, sobretudo, com nomes inventados, comemorativos de um acontecimento qualquer, como era o caso, muito citado por ela, de uma tal Dona Holofotina, batizada no dia em que inauguraram a luz elétrica na rua em que a família morava.

Acrescente-se também que Vovó não mantinha relações com pessoas de nomes tirados metade da mãe e metade do pai. Jamais perdoou a um velho amigo seu — o "Seu" Wagner — porque se casara com uma senhora chamada Emília, muito respeitável, aliás, mas que tivera o mau-gosto de convencer o marido de batizar o primeiro filho com o nome leguminoso de Wagem — "wag" de Wagner e "em" de Emília. É verdade que a vagem comum, crua ou ensopada, será sempre com "v", enquanto o filho de "Seu" Wagner herdara o "w" do pai. Mas isso não tinha nenhuma importância: a consoante não era um detalhe bastante forte para impedir o risinho gozador de todos aqueles que eram apresentados ao menino Wagem.

Mas deixemos de lado as birras de minha avó — velhinha que Deus tenha, em Sua santa glória — e passemos ao estranho caso da família Veiga, que morava pertinho de nossa casa, em tempos idos.

"Seu" Veiga, amante de boa leitura e cuja cachaça era colecionar livros, embora colecionasse também filhos, talvez com a mesma paixão, levou sua mania ao extremo de batizar os rebentos com nomes que tivessem relação com livros. Assim, o mais velho chamou-se Prefácio da Veiga; o segundo, Prólogo; o terceiro, Índice e, sucessivamente, foram nascendo o Tomo, o Capítulo e, por fim, Epílogo da Veiga, caçula do casal.

Lembro-me bem dos filhos de "Seu" Veiga, todos excelentes rapazes, principalmente o Capítulo, sujeito prendado na confecção de balões e papagaios. Até hoje (é verdade que não me tenho dedicado muito na busca) não encontrei ninguém que fizesse um papagaio tão bem quanto Capítulo. Nem balões. Tomo era um bom extrema-direita e Prefácio pegou o vício do pai - vivia comprando livros. Era, aliás, o filho querido de "Seu" Veiga, pai extremoso, que não admitia piadas. Não tinha o menor senso de humor. Certa vez ficou mesmo de relações estremecidas com meu pai, por causa de uma brincadeira. "Seu" Veiga ia passando pela nossa porta, levando a família para o banho de mar. Iam todos armados de barracas de praia, toalhas etc. Papai estava na janela e, ao saudá-lo, fez a graça:

— Vai levar a biblioteca para o banho? "Seu" Veiga ficou queimado durante muito tempo.

Dona Odete — por alcunha "A Estante" — mãe dos meninos, sofria o desgosto de ter tantos filhos homens e não ter uma menina "para me fazer companhia" - como costumava dizer. Acreditava, inclusive, que aquilo era castigo de Deus, por causa da idéia do marido de botar aqueles nomes nos garotos. Por isso, fez uma promessa: se ainda tivesse uma menina, havia de chamá-la Maria.

As esperanças já estavam quase perdidas. Epílogozinho já tinha oito anos, quando a vontade de Dona Odete tornou-se uma bela realidade, pesando cinco quilos e mamando uma enormidade. Os vizinhos comentaram que "Seu" Veiga não gostou, ainda que se conformasse, com a vinda de mais um herdeiro, só porque já lhe faltavam palavras relacionadas a livros para denominar a criança.

Só meses depois, na hora do batizado, o pai foi informado da antiga promessa. Ficou furioso com a mulher, esbravejou, bufou, mas — bom católico — acabou concordando em parte. E assim, em vez de receber somente o nome suave de Maria, a garotinha foi registrada, no livro da paróquia, após a cerimônia batismal, como Errata Maria da Veiga.

Estava cumprida a promessa de Dona Odete, estava de pé a mania de "Seu" Veiga.

Texto extraído do livro "A Casa Demolida", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1963, pág. 175.

(fonte: releituras.com)

terça-feira, 25 de março de 2008

Poesia: O Corvo

Edgar Allan Poe

(Tradução machadiana)

Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho
E disse estas tais palavras:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o colchão refletia
A sua última agonia.
Eu ansioso pelo Sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui, no peito,
Levantei-me de pronto, e "Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais."

Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo, e desta sorte
Falo: "Imploro de vós - ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso
Já cochilava, e tão de manso e manso,
Batestes, não fui logo, prestemente,
Certificar-me que aí estais."
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra
Que me amedronta, que me assombra.
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro co'a alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma coisa que sussurra. Abramos,
Eia, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais,
Devolvamos a paz ao coração medroso,
Obra do vento, e nada mais."

Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
de um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta em um busto de Palas:
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gosto severo, - o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "Ó tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o corvo disse: "Nunca mais."

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que eu lhe fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Coisa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta a dizer em resposta
Que este é seu nome: "Nunca mais."

No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário.
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda sua alma resumisse,
Nenhuma outra proferiu, nenhuma.
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
"Tantos amigos tão leais!
"Perderei também este em regressando a aurora."
E o corvo disse: "Nunca mais."

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: "Nunca mais."

Segunda vez nesse momento
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E, mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera,
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais."

Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranqüilo, a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível:
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."
E o corvo disse: "Nunca mais."

"Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o corvo disse: "Nunca mais."

"Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No Éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais,
"Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!"
E o corvo disse: "Nunca mais."

"Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa! (clamei, levantando-me) cessa!
Regressando ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo...
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o corvo disse: "Nunca mais."

E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!

(Do livro Ocidentais. Machado de Assis. 1880.)

domingo, 23 de março de 2008

Gramática: os erros da citação.

Certa vez, postou-se, no fórum SOLP, um tópico que trazia uma citação que continha algumas transgressões gramaticais. Um caro forista, por sinal, muito atuante no fórum, pedia que se reconhecessem os erros da citação, que foi transcrita abaixo junto às perguntas do autor do tópico.

 

"Paulo diz a Rodrigo:
'O show foi assistido por diversas pessoas, dentre as quais Mário e Felipe. Como você bem sabe, aproveitei pois, para cumprimentar-lhes. Mário, infelizmente, preferiu manter-se à distância que ouvir-me com atenção'".

Contabilizei seis desvios. Tentem encontrá-los e corrigi-los, expondo, claro, as respectivas justificativas lógicas.

Como não podia deixar de ser, também deixo uma dúvida:

Usei as aspas corretamente aqui: atenção'". ?

A minha resposta:

Olá, ***. Encontrei os cinco erros descritos abaixo; são eles os mesmos que contabilizaste?

1.º - Há, no segundo período, erro de pontuação, porque a palavra pois deveria aparecer entre vírgulas; trata-se de uma conjunção que somente será classificada como coordenativa conclusiva quando vier deslocada (logo após o verbo). Não ocorrendo o deslocamento, classificar-se-á como conjunção coordenativa explicativa. Ex.: Choveu muito; trataram, pois, de cuidar do cultivo de mandioca (conj. conclusiva); "Todo homem morre, pois ninguém é imortal" (conj. explicativa).

2.º - Ainda no segundo período, ocorre mais um erro: empregou-se mal pronome oblíquo. Em vez de lhes, que tão-só funciona como objeto indireto, dever-se-ia empregar o pronome los, que, sendo objetivo direto, estaria de acordo com a regência do verbo cumprimentar, que é transitivo direto.

3.º - No terceiro período, apareceu solecismo regencial bem ventilado: o verbo preferir é transitivo direto e indireto, regendo objeto indireto seguido da preposição a, e nunca que, do que, etc. Outra informação importante acerca do emprego de tal verbo é que não se lhe devem pospor alguns advérbios e locuções adverbiais, tais como mais, mil vezes, muito mais, etc.; são, portanto, incoerentes estas construções: prefiro muito mais cachaça a vodca; prefiro mil vez lutar a ser eterno escravo.

4.º - Ocorreu também, ainda no terceiro período, emprego incorreto de acento grave em "à distância", pois, quando houver tal expressão em sentido indeterminado, o emprego da crase é impróprio; determinando-se, porém, a expressão, o emprego apresenta razão de ocorrer. Ex.: "No zoológico, os animais ficam a distância"; "Os guardas ficaram à distância de cem metros".

5.º - Há, no primeiro período, vício de linguagem: um estrangeirismo. Não haveria problema algum se a palavra show estivesse escrita entre aspas ou em itálico, o que não ocorreu. Por sinal, existem, em nosso léxico, palavras que substituem perfeitamente a palavra inglesa.

O trecho seria assim reescrito: "Paulo diz a Rodrigo:
'O show foi assistido por diversas pessoas, dentre as quais Mário e Felipe. Como você bem sabe, aproveitei, pois, para os cumprimentar. Mário, infelizmente, preferiu manter-se a distância a ouvir-me com atenção'".

***, o trecho que dispuseste neste tópico fez-me lembrar alguns detalhes da sintaxe. A primeira frase proferida por Paulo lembrou-me que, apesar de assistir ser transitivo indireto quando possui acepção de presenciar, esse verbo pode ser construído na voz passiva. Ex.: o filme foi assistido por todos os alunos. Quanto à tua dúvida sobre o emprego seqüencial das aspas simples e duplas (nota que essa concordância está correta, visto que "aspas" pertence à lista pluralia tantum dos substantivos, os que só se empregam no plural), não as empregaste corretamente, pois deverias ter notado que o período já foi iniciado por aspas duplas, o que obriga as últimas aspas duplas a virem após o ponto que encerra o período. As aspas simples devem vir antes do ponto, pois elas indicam uma citação dentro de outra e pertencem, pois, ao período completo. Deverias ter escrito assim: (...)ouvir-me com atenção'.". Caro ***, espero ter contribuído contigo, e sabe que estou demasiado grato com a diversão. Um abraço deste que te escreve, e até outros tópicos.

Perguntou-me depois o caro forista se não haveria deficiência da naturalidade do discurso quando eu assim escrevi: "(...) e sabe que estou demasiado grato (...)". Cá está a transcrição de seu questionamento:

"E sabe que estou demasiado" é um trecho que me causa verdadeira estranheza, ainda que esteja corretíssimo. Isso se deve ao fato de que ele apresenta uma comum oração optativa usada aqui ("E saiba") conjugada na segunda pessoa do singular. Hehe. Enfim, a ti, soa natural?

Resp.: quanto ao meu emprego de "(...) sabe que estou demasiado grato com a diversão", aparenta realmente afetação de quem escreve, mas temi novamente corromper a uniformidade de tratamento.

Em minha resposta, que está no fórum, cometera equívoco ao considerar que, quando houvesse verbo na forma nominal infinitiva, não formando locução verbal e sendo antecedida por preposição, só seria permitida a ocorrência de próclise, o que está deveras errado, pois tanto esta quanto a ênclise são permitidas quando ocorre infinitivo impessoal "solto". Postarei aqui minha retratação, que já fora lida pelos membros do fórum. Cá está ela:

Olá, ***. Responderei inicialmente à questão da colocação pronominal: nota que a preposição para introduz, sozinha, a oração subordinada adverbial final reduzida de infinitivo, pois a locução conjuntiva para que só apareceria se a oração subordinada estivesse desenvolvida. Peço-te que me perdoes por ter classificado essa preposição como conjunção; foi pura desatenção, pois sabe-se que, quando uma oração subordinada estiver reduzida, pode, senão deve, ocorrer elipse da conjunção, geralmente se mantendo apenas a preposição. Ex.: "Abri todas as porteiras para o meu amor passar" (O. Mariano, TVP, II, 638.); "Abri todas as porteiras para que o meu amor passasse" (forma desenvolvida da oração subordinada). Realmente, já li em diversos sítios ser facultativa a ocorrência da próclise ou da ênclise em tal caso, e, por se dizer essa faculdade em boas gramáticas, tomo-a como regra. Torno, portanto, a pedir-te desculpa por meu deslize ao condenar a ênclise, visto que, em sua Gramática da Língua Portuguesa, o nosso saudoso Celso Ferreira da Cunha assim escreveu:


"Com os infinitivos soltos, ainda quando modificados por negação, é lícita a próclise ou a ênclise, embora se verifique uma acentuada tendência para esta última colocação pronominal: 

'Em que, antes de a amar, se pensa, mesmo sem precisar vê-la...?' (C. Meireles, OP, 591.)

'Nem falou a Dondon naquela carta, para não incomodá-la.' (J. L. do Rego, U, 225.)

'O que eu queria era só apertá-la nos meus braços.' (G. Rosa, S, 211.)"

Enfim, a regra vai além da seqüência preposição + verbo no infinitivo, aplicando-se toda vez em que houver infinitivo solto, sem formar locução verbal ou tempo composto. Dando-se estes casos, é necessário que se sigam as regras já bem conhecidas de colocação pronominal, que não as relembrarei para não tornar esta mensagem muito extensa.

O colega de fórum perguntou-me ainda se haveria licitude em emprego meu de pronome oblíquo átono as em linhas finais de minha resposta acerca da colocação pronominal. Cá está sua pergunta:

 

Gustavo_HSAL escreveu:

Dando-se estes casos, é necessário que se sigam as regras já bem conhecidas de colocação pronominal, que não as relembrarei para não tornar esta mensagem muito extensa.

É lícito o uso do pronome em negrito? Parece-me que ele entra em choque com o pronome relativo, não?

Resp.: olá, ***. Não há, nesse caso, um pronome relativo, senão uma conjunção coordenativa explicativa, equivalente a pois. Nota a reconstrução: "Dando-se estes casos, é necessário que se sigam as regras já bem conhecidas de colocação pronominal, pois não as relembrarei para não tornar esta mensagem muito extensa". Outros exemplos: "Levante-se, que já é tarde!"; "Chupa esse picolé. Chupa-o, que é de uva". Um abraço, ***, e até outros tópicos.

Perguntou-me se haveria realmente uma relação de explicação introduzida pela conjunção que. Cá está seu questionamento:

Há uma relação de explicação em "Dando-se estes casos, é necessário que se sigam as regras já bem conhecidas de colocação pronominal, pois não as relembrarei para não tornar esta mensagem muito extensa."?

Resp.: ***, explico o porquê da necessidade de as regras já bem conhecidas de colocação pronominal serem seguidas sem mais explicações: a intenção minha de não encompridar a mensagem. Um abraço, e até outras mensagens.

domingo, 16 de março de 2008

Conto: A intrepidez, por fim, condenou-o à morte.

    "Que se faça justiça!", bradou o pai inconformado, ao ter em seus braços o corpo ensangüentado daquele que gerara e cuidara com todo o amor, o filho único. O torpor tomou-lhe conta da sanidade, o pobre velho não conseguia pensar em mais nada. A tez branca do defunto o hipnotizara, e o olhar cadavérico não o motivara sequer a baixar-lhe as pálpebras. Quem diria que o jovem morrera em vão? Foram tão-só dois balaços no peito, projetis fulminantes que lhe enfearam o tórax.
    Os tiros puseram fim ao terror que, de há muito, atormentava a mãe do rapaz, o qual, em pequena cidade interiorana, nasceu e viveu toda a sua pouca vida, mas, a partir dos dezoito anos, passou a enfrentar todas as dificuldades que implicaram sua morte. Andou-se enrabichando com filha jeitosa do homem mais aguerrido da cidade, um barbudo que se julgava o único coronel daquelas bandas. Apesar de toda a fama do tal coronel, o jovem não temia a barba crassa e a voz bravia do pai da moça com que se encontrava e dizia forte que, se barba valesse respeito, o pobre do bode não teria chifres. Os primeiros encontros foram às escondidas, por querer da própria moça, que temia mais pela saúde do amásio do que ele próprio. O rapaz sempre mostrava-se contrário à surdina que envolvia os seus encontros, e a sua moça considerava-o tão corajoso quanto burro, posto que o amor, ou não tanto, uma forte atração, atava-a ao corpo do rapaz, que, intransigente, reclamava-lhe exposição do namoro. A mãe do rapaz era, das figuras femininas, a que mais sofria com as aventuras do filho. Ela rezava todos os dias para que nada de mal lhe ocorresse, mas o filho denodado achava que coisa alguma poria fim ao caso que sustentava com a filha do coronel. O jovem era, de certo, mais uma vítima do denodo exacerbado, descomedido destemor, que afeta os jovens apaixonados, tornando-os cegos, descrentes do perigo que os circunda.
    O pai do mancebo não rechaçava o namorico sustentado por ele, senão apoiava forte o relacionamento do rapaz, mesmo sabendo que a moça era filha de seu superior, o homem a quem servia desde que chegou à cidade em busca de trabalho, muito antes de conhecer sua esposa, a mãe do denodado rapaz. A necedade foi a herança direta que o pai deixou ao filho, o velho orgulhava-se do sorriso diário do menino, mas não notava que sua percepção e inteligência morosas em não alertá-lo do perigo estavam preparando o túmulo de seu rapaz, ou pior, a cena em que todo aquele torpor que se lhe acometeria ao ver o semblante horrendo do rapaz que, enfim, se aquietaria em seus braços. A intrepidez, por fim, condenou-o à morte.

(Por Gustavo Henrique S. A. Luna)

domingo, 9 de março de 2008

Gramática: as dúvidas dos "foristas" do SOLP.

    Neste blogue, postarei freqüentemente algumas dúvidas gramaticais presentes no fórum de Língua Portuguesa SOLP (Só Língua Portuguesa) e as respostas dadas por mim. Eis o intento de divulgar tal sítio, em que são tratadas diversas questões acerca de nossa língua. O incipiente fórum tem adquirido muitos membros, e, caso queiras ser um deles, basta que o acesses por meio do endereço: www.solp.com.br/forum.

Cá está a questão:

Olá! Gostaria de saber quais dessas alternativas respeita as regras da gramática normativa tradicional e qual seria o erro encontrado.

1. O envase era feito na própria refinaria e os botijões eram transportados em barcaças a Salvador, para distribuição domiciliar, dando início a uma experiência-piloto, já que as empresas instaladas no país, comercializavam seus botijões a partir da venda inicial conjunta de fogão e botijão.

2. Proporcionalmente a Liquigás do Brasil destacou-se por algumas atividades inovadoras. Ela mantinha um concurso interno entre seus revendedores: aos que mais se destacavam, oferecia-lhes viagens à Itália, onde as instalações da matriz faziam parte do roteiro.

Agradeço a atenção.

A minha resposta:

Olá, ***. Analisei as duas passagens textuais e encontrei transgressões tão-somente na primeira. Valho-me da oportunidade para deixar o alerta a quem escreve: cuidado com a construção de períodos muito longos! Eles exigem do escritor mais cuidado a fim de que não cometa nenhum solecismo. Tratarei os textos pela ordem em que me foram apresentados.

1.º - Na face da oração aparece cacografia acerca da qual já se falou bastante: não se escreve o envase, mas sim a envasa, que se refere ao verbo envasar, que a propósito deriva de vaso.

2.º - A fim de que haja a concordância do verbo na voz passiva, faz-se a reconstrução: A envasa era feita na própria refinaria (...).

3.º - Atenção: pode ou não ocorrer a anteposição de vírgula à conjunção coordenativa e, visto que há orações coordenadas cujos sujeitos são distintos. Eis uma faculdade, não há, pois, erro algum na omissão de tal sinal.

4.º - Ocorre a segunda cacografia: experiência-piloto. Não existe tal palavra composta, visto que há, em verdade, o determinante substantivo piloto (tal como outros determinantes substantivos: surpresa, pirata, cassete, relâmpago, bomba, monstro, etc.) que modifica o substantivo experiência; escreve-se somente experiência piloto.

5.º - Aparece, agora, o primeiro solecismo, que, por sinal, representa um dos erros mais crassos de nossa sintaxe: o emprego de vírgula entre termos essenciais da oração. A reconstrução se dá assim: as empresas instaladas no País comercializavam seus botijões (...).

6.º - Há também falta de emprego de inicial maiúscula na palavra "país".

7.º - Seria mais própria a substituição da locução prepositiva a partir de por estoutra: por meio de; pois aquela se refere à marcação do ponto ou limite inicial de uma contagem ou ao embasamento por meio de idéias, informações, suposições, etc.

8.º - O erro derradeiro, em minha análise, é a falta de paralelismo sintático na introdução dos complementos nominais fogão e botijão, pois, afim de se respeitar a boa coordenação, o final da frase deveria ser assim reescrito: (...) da venda inicial conjunta de fogão e de botijão.

O texto totalmente corrigido fica assim:

A envasa era feita na própria refinaria e os botijões eram transportados em barcaças a Salvador, para distribuição domiciliar, dando início a uma experiência piloto, já que as empresas instaladas no País comercializavam seus botijões por meio da venda inicial conjunta de fogão e de botijão.

Caso outro "forista" tenha descoberto mais algum erro, espero que não faça cerimônia em vir aqui contribuir com o tópico. E quanto a ti, ***, espero ter-te ajudado com esta análise. Um abraço deste que te escreve, e até outros tópicos.

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.