segunda-feira, 19 de maio de 2008

Gramática: a palavra "que".

Perguntaram, por fim, a distinção entre as classificações da palavra que, assunto interessante e que nos permite uma viagem de extenso itinerário à morfologia e à sintaxe. Tentei responder concisamente, o que foi inútil, posto que tal assunto nos exige a paciência de apreciar a versatilidade de um vocábulo formalmente tão pequeno, mas que se mostra imenso na frase, guiando-nos por diversos caminhos e mostrando-nos alguns segredos da língua, pontos turísticos que são as formas vívidas de expressão de tal palavrinha. Eis então a minha resposta:

Olá, ***. A distinção entre as várias classificações que o que pode assumir na oração torna-se clara quando observamos as palavras e a pontuação a ele associadas. Ele pode ser:

1.º - Substantivo

Nesse caso, ele geralmente vem precedido de artigo e, por ser vocábulo monossílabo tônico, é sempre acentuado. Ex.:

"Meu bem-querer tem um quê de pecado..." (Djavan)
Ela nos mostrou um quê de insatisfação.
Encontre todos os quês do texto.

2.º - Interjeição

Como toda interjeição, exprime sentimento e representa uma frase implícita. Sempre leva acento gráfico, pelo mesmo motivo do substantivo homônimo. Ex.:

Quê! Não acredito que eles fizeram isso!

3.º - Advérbio de intensidade

Modifica o adjetivo ou outro advérbio, equivalendo à palavra quão. Ex.:

Que bom revê-lo, Joaquim!
Que bonita é aquela moça!

4.º - Pronome adjetivo

Sempre acompanha o substantivo. Ex.:

Que casa compraste recentemente? (pronome adjetivo interrogativo)
Que idéia de jerico! (pronome adjetivo exclamativo)
Não sei que livro devo comprar. (pronome adjetivo indefinido)

5.º - Pronome substantivo

Assume o lugar do substantivo na frase e, se vier em final desta, será proferido tonicamente, levando acento pelo mesmo motivo do substantivo e da interjeição.

Que te fez mal ontem à noite? (pronome substantivo interrogativo)
Joana me disse não sei o quê. (pronome substantivo indefinido)

6.º - Pronome relativo

Substitui substantivo ou pronome substantivo, exercendo diversas funções sintáticas. Pode-se construir, à parte, uma oração elucidativa dessa substituição; por exemplo, em "A árvore que dava muitos frutos sucumbiu", pode-se notar que o que exerce função de sujeito da oração adjetiva restritiva que dava muitos frutos e, à parte, por motivo de melhor compreensão de que o substantivo árvore é substituído pelo que, poderíamos escrever a seguinte oração: A árvore dava muitos frutos. Ex.:

A pitombeira que está perto da praça municipal dá muitos frutos. (que = sujeito de está)
"O melhor retrato de cada um é aquilo que escreve." (que = objeto direto de escreve)
Luiz Gonzaga é o nordestino de que sou fã. (de que = complemento nominal do substantivo predicativo )

Obs.: O relativo que também aparece determinando o pronome substantivo demonstrativo neutro o, quando este funciona como aposto na oração. Ex.: Choveu muito, o que não é bom para a corrida automobilística. (o demonstrativo vicário o funciona como aposto e poderia ser substituído por substantivo como fato ou coisa; que funciona como sujeito da oração adjetiva ulterior)

7.º - Conjunção coordenativa

Liga orações que são independentes sintaticamente. É importante notar o fato de que, algumas vezes, a palavra que vem após vírgula, não possui referente substantivo anafórico nem se enquadra em nenhuma das outras classificações supracitadas; o que é indício prático de que se trata de uma conjunção coordenativa adversativa, explicativa ou alternativa correlativa. Ex.:

"Culpe-os, que não a mim!" (que = mas; portanto, adversativa)
Chupa esse picolé, que ele é de uva. (que = pois; é, portanto, explicativa)
Que chova, que faça sol, casarei amanhã, dia 30 de fevereiro. (que... que = ou... ou; conjunção coordenativa alternativa correlativa)

8.º - Conjunção subordinativa

Liga orações que são dependentes sintaticamente. Ex.:

O importante é que consegui um bom emprego e tenho saúde. (conjunção subordinativa integrante)
Dizem que um jogador de futebol famoso se deu mal com travestis.
Agora que nos vamos casar, cai este pé-d'água! (conjunção subordinativa temporal)
Falou tanto, que parecia ter tomado água de chocalho. (conjunção subordinativa consecutiva)
Vou cuspir no chão e espero que você volte antes de o cuspe secar. (conjunção subordinativa integrante)
Samarica parteira gritava mais que a parturiente. (conjunção subordinativa comparativa).

9.º - Palavra expletiva ou de realce

Pode ser removida da oração sem prejuízo algum da mensagem. Ex.:

Quase que quebrei a perna quando praticava "Le Parkour".
Nunca que eu praticaria algo que colocasse minha saúde em risco.
Que felizes que eram aqueles dois na flor da mocidade.
Obviamente que não tentei a asneira de escalar o muro para pegar jambo; não pularia, portanto, sem motivo algum.

Atenção à locução expletiva é que, quando aparece em conjunto antes do verbo principal da oração. Essa locução é diferente da também expletiva locução do tipo verbo ser + sujeito + que + verbo principal (sou eu que pratico judô todos os dias = eu pratico judô todos os dias). Apesar de ambas serem expletivas, podendo ser retiradas da oração, elas enfatizam a ação do verbo principal, conferindo-lhe mais destaque. Ex.:

Eu é que não pratico as estripulias de meu sobrinho: ficar escalando tudo o que vê.
Foram nossos pais que enfrentaram a viperina ditadura militar: 21 anos de sofrimento, medo e governança inepta.
Joaquim é que não temia cara feia, enfrentou o valetão dizendo que a gravata de bolinhas amarelas era horrível.

10.º - Preposição

Pode ser substituída pela preposição de.

Primeiro que tudo é preciso muito estudo para ser aprovado no vestibular.

A palavra que também aparece como preposição na locução verbal ter + que + verbo no infinitivo. Questão polêmica é a distinção entre ter que e ter de. Já li em algumas apostilas uma distinção sem fundamento algum, que afirmava que ter de distingue-se da outra expressão por indicar obrigação, o que, segundo essas apostilas, ter que não faria. Outros autores são mais maleáveis e afirmam que não há distinção alguma, podendo-se usar tanto uma quanto outra. A distinção mais interessante e que considero mais coerente e acertada foi escrita pelo célebre prof. Paulo Hernandes. Ele diz que a Gramática tradicional afirma que em ter que, além da idéia de obrigatoriedade, há, em verdade, um pronome relativo representado pela palavra que e a idéia subentendida do pronome indefinido muito, o próprio escrito realmente (tenho muito que estudar) ou omitido por conta de ele ser facilmente reconhecido como referente no contexto. Ele afirma que a Gramática tradicional recomenda ainda que, se o que não tem antecedente com o qual se relacionar, não é apropriado o uso de tal palavra e ela deve, portanto, ser substituída pela preposição de. Para saberes mais, consulta a página do professor: dica n.º 114.

Isso é tudo que posso falar sobre as diversas classificações da palavra que. Um abraço, e até outros tópicos.

"Contículo": Saiu do milharal ou da cabeça?

fonte da fotografia: masterkitchen.com.br

Saiu dali, do milharal, a delícia que lhe constrói a carreira. O menino corre como quem foge de bicho bruto, leva um tombo daqueles e bate a cara no calçamento. Oito pontos na testa! Preço de pouco juízo e de muita vontade de comer aquele manzape da mamãe.

Presenciou toda a cena outro moleque ainda mais desajuizado, que soltou a gargalhada mais daninha por conta da queda do esfaimado. Ah! Infeliz! Assustou-se, porém, quando o menino levantou a face ensangüentada. O gaiato que mangara do tombo ficou branco como burro que foge e entrou espavorido na casa dos pais do menino gritando que o pobre danado estava morrendo, perdendo muito sangue (ah! "fi' d'uma égua exagerado!")

Pronto! Levaram o abestalhado para o hospital. Foi bufando, porquanto não comera sequer a menor das fatias daquele manzape cheiroso.

(por Gustavo Henrique S. A. Luna)

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.