sábado, 31 de julho de 2010

Sugestão musical: Uriah Heep - ...Very 'eavy... Very 'umble

Inicialmente denominada Spice, a banda inglesa, no final de 1969, passa a se chamar Uriah Heep, nome de uma das personagens do romance David Copperfield, de Dickens. A estreia do grupo musical é arrebatadora. Quem conhece Uriah Heep sabe que não me preciso estender falando da banda. O disco ...Very 'eavy ...Very 'umble está longe de ser o melhor álbum do grupo, mas é obra muito boa. Alguns dizem que Uriah Heep é banda de roque progressivo porque, em muitas canções, há forte presença de teclados com sintetizadores, mudanças de andamento mais exóticas e que tais; não acho que seja banda suficientemente progressiva. Enquadra-se mais no grupo das bandas de hard rock sessentista mais experimentais. O álbum de estreia traz uma das mais esquisitas capas que já vi; nela está o finado vocalista David Byron, que esteve à frente da banda de 69 a 76, com a cabeça envolta por teia de aranha. A pretensão é fazer resenha musical leveira e sincera, sem os atavios enfadonhos de descrição estreitamente técnica nem os arroubos de encantamento pela obra que estacionam o raciocínio às primeiras notas. Tendo essa posição como fulcro do juízo, entro a descrever cada uma das canções. Gypsy inicia o álbum muito bem, com força; os teclados começam reclamando da vida e, em seguida, o contrabaixo se intromete, com a timidez caraterística, e também começa a reclamar da vida. Depois de um tantinho, estão os dois instrumentos discutindo, batendo boca, porque a bateria 'tá dando as ordens, fazendo a marcação. No entanto, o que traz ordem ao caos são os riffs fortíssimos de guitarra que, no início do segundo minuto, insinua como a música se deve desenrolar. O terreno, nesse momento, na metade do segundo minuto, está preparado para o ingresso de David Byron. Aos 2min20s começa o gozo dionisíaco de variadas experiências sonoras; o teclado fica louco, levado pela energia da marcação dos demais instrumentos, e começa um solo devasso, excessivo e inteiramente livre das peias musicais do hard rock (por isso, um tanto experimental, ou um tanto progressivo, como querem alguns). Essa loucura deliciosa dura até os 4min08s de música, e, a partir desse ponto, dá-se a trégua. Aos 4min55, a música se ajusta ao (digamos) hard progressivo típico (sim, o grupo apresenta traços progressivos) e continua com a marcação pesada, com a guitarra aguerrida e com os teclados soltos e danados. Aos 5min55, dá-se a experiência, uma bagunça envolvendo todos os instrumentos, e o fim caceteiro. Excelente entrada, Gypsy. Walking In Your Shadow não me impressiona, é boa canção de hard rock. Traz um bom solo de guitarra, seguido duma leveira quebra de ritmo, que é imediatamente revertido ao estado dantes. Destaque para muito bons riffs de guitarra. Come Away Melinda é a canção mais melodiosa do álbum, às vezes minguante, meio chorosa, mas boa. Lucy Blues é tão-somente bom exemplar de blues, sem nada de especial; às vezes, a canção é comum até demais (se bem que isso é bem desse gênero musical: nele há sempre um catatau de canções parecidas). O que mais nos chama atenção são as muito boas passagens de teclado, com uma pitada de nervosismo que fica muito bem na marcação de blues. O bom desse momento bluesístico é que Byron pode abusar bastante de sua voz; a veia excessivamente melódica mais do que permite. Dreammare (agora, sim!) é um dos pontos altos desse álbum, se não o mais alto; é cacetada de hard rock. Excetuando-se o cantarolado no entremeio da melodia (isso é bem pessoal: não gostei muito), a canção revela a que veio toda a energia da banda. Outra canção muito boa vem em seguida; Real Turned On é outro ponto alto, e os riffs de guitarra nela presentes lembram-me muito, muito mesmo, Wishbone Ash, sem toda a multiplicidade de guitarras, evidentemente. Talvez seja toda a típica energia do hard rock pincelada, muito certamente, com o andamento bluesístico em algumas levadas, um pouco mais enérgico, o que me faz lembrar essa outra banda britânica. I'll Keep On Trying é gema da banda, até hoje muito presente nos shows; a introdução dada por guitarra, teclado e canto bem chamativo é bem a cara do Uriah Heep. Há, nessa canção, algumas mudanças de andamento bem típicas: aos 2min10, a canção torna-se bem mais melodiosa, com um coro ao fundo, o que é, em verdade, o introito de um crescente e paulatino retorno à agressividade dum solo fortíssimo de guitarra, que imediatamente explode. Aos 4min37 ocorre a mudança de andamente que já se havia dado nos instantes iniciais da canção, a guitarra traça o rumo ligeiro e enérgico, que desemboca num excedente de teclado fazendo charme no encerramento da canção, imitado, pouco depois, pelo resto dos instrumentos. Wake Up (ou Set Your Sight) é muito boa! É a canção mais bem composta e talvez a mais tecnicamente esmerada do disco. Começa falseando, sem querer entregar o jogo, mostrando a voz lamentosa e minguante de Byron e dando sinais, falsos, de que a música será excessivamente pra baixo. O andamento de bateria, entanto, desmente tudo, pouco depois, ainda no começo da canção, e assume espírito bastante jazzístico. O contrabaixo e a guitarra seguem a energia alegremente iniciada pela bateria. A voz um tanto chorosa, às vezes, contrasta com essa levada um pouco mais enérgica. A mudança de ânimo nos entremeios da canção faz dela a mais interessante do álbum, ou mesmo a melhor (por que não?). Aos exatos 3min, a música torna-se mais leve, mais onírica, mais doce, o que a faz bastante especial, pois a transição foi muito bem preparada, sem romper com todo o tema, que é encerrado nesse estado, mais leve e bonito.

Faixas:

1. Gypsy [6min38s]
2. Walking in Your Shadow [4min30s]
3. Come Away Melinda [3min48s]
4. Lucy Blues [5min8s]
5. Dreammare [4min37s]
6. Real Turned On [3min39s]
7. I'll Keep on Trying [5min27s]
8. Wake Up (Set Your Sight) [6min20s]

Selo: Mercury.

Lançamento: Junho de 1970.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Gramática: O plural dos substantivos terminados em “–ão” tônico.

      Peço antes perdão ao visitante que me acompanha há algum tempo, aos amigos que me leem e ao visitante acidental, que de falta de tempo me fartei a não mais poder. Volto a casa, a estas bandas, a estas aldeias gramaticais, para tentar, responsável e verdadeiramente, desmitificar o monstro que se faz dos plurais dalguns substantivos amigos. Hoje respondi a questão de morfologia muito comum. Perguntou-me confrade do nosso fórum Só Português, que pessoalmente ainda chamo SOLP, quais regras determinam os plurais de substantivos terminados em -ão tônico. Abaixo está o que lhe respondi.

Olá, ***. O que se sabe é que não há regras que definam os plurais de substantivos terminados em -ão tônico. Num mecanismo suficientemente lógico, existem, por exemplo, regras que determinam os plurais de substantivos terminados em -l; para os terminados em -ão tônico, infelizmente, elas não existem. O que as gramáticas mostram são exemplos e mais exemplos de uso. Rigorosamente, fazem-se descrições dos plurais de nomes em -ão tônico com o uso de regras morfofonêmicas, o que não é nada interessante em estudo descritivo mais simples, como o do ensino médio. Bechara, em sua Moderna Gramática Portuguesa, afirma que "os nomes em -ão tônico a rigor pertencem à classe dos temas em -o ou em -e, conforme o plural respectivo" (BECHARA, 2005: 119). Baseado numa estratégia proposta por Mattoso Câmara, o que Bechara descreve é o caminho inverso: do plural se descobre o tema do substantivo. Isso não é regra para determinar plural; assim o que se pode fazer é reunir e categorizar palavras com o mesmo tema e submetidas às mesmas regras morfofonêmicas.

1.º) Substantivos com radical em e com tema em -e fazem plural com o acréscimo de -s. Por exemplo, leão faz leões (*leõ + e + s); visão, visões (*visõ + e + s); coração, corações (*coraçõ + e + s) etc. Neste grupo está a maioria dos substantivos em -ão tônico. Todos os abstratos terminados nos sufixos -ção, -são e -ão seguem essa "regra". Obs.: Uma dica geralmente certeira é relacionar o substantivo com algum adjetivo derivado para descobrir a terminação de seu radical modificado pelas regras morfofonêmicas. Por exemplo, sabe-se que, na formação consequente, o radical de leão é leõ, e não leã, recorrendo ao adjetivo leonino, em que esse radical está evidente (*leõ = *leo(n)).

2.º) Substantivos com radical em e com o tema em -o fazem o plural com a adição da desinência -s. Por exemplo, irmão faz irmãos (*irmã + o + s); cidadão, cidadãos (*cidadã + o + s); cristão, cristãos (*cristã + o + s); grão, grãos (*grã + o + s) etc. A dica da observação do item anterior não se aplica a esses substantivos. Notem-se as palavras relacionadas que seguem as mesmas regras morfofonêmicas: irmão, irmanar, irmandade; cidadão, cidadania; cristão, cristandade; grão, granito, granoso. Elas apenas esclarecem que o radical consequente termina em , e não em ; não sugerem, portanto, nenhum caminho para determinar o plural. A razão disso aparece na observação presente no tópico seguinte.

3.º) Substantivos com radical em e com o tema em -e fazem o plural com a adição da desinência -s. Obs.: Nesse ponto reside o problema, e nele muitos se embananam, saracoteiam, e não saem do lugar. Ora! Não saem porque não há aonde ir. A questão é que os substantivos desse e do segundo caso têm radical consequente, já preparado pelas regras morfofonêmicas, com a mesma terminação, e neles aparecem vogais temáticas distintas. Como usa dizer meu pai: "Aí, babau!", porque não se pode recorrer à dica da semelhança material com palavras de outras classes, pois nestas, no mais das vezes, não aparecerá a vogal temática, que é o ponto distintivo nesse caso. Em panificar, tem-se *pã(n), mas não há sinal da vogal temática, para que se possa determinar o plural de pão. Deixando de lado nosso conhecimento da forma das palavras (estabelecido pela frequencia com que se nos deparam) e seguindo estritamente o modo como se formam, consoante o processo já descrito, sabendo que *pã é o radical, poder-se-iam formar pãos ou pães, já que, num raciocínio direto, não se sabe que, na formação do plural de pão, aparece a vogal temática e. O mesmo acontece com capitão, alemão, catalão, escrivão etc. Resumindo: Nesse caso, é possível excluir o primeiro tipo de plural, com radical consequente em , mas não é possível, seguindo raciocínio estritamente lógico, determinar se o plural de um substantivo com radical em termina em -ãos ou em -ães. Isso é questão baseada no uso, na frequência com que os grandes nomes da Literatura flexionavam esses substantivos. Tanto é assim, que muitos desses substantivos apresentam mais de uma forma para o plural (aldeão: aldeãos, aldeões, aldeães; refrão: freãos, refrães). Bechara, evidenciando o modo desregrado como se dão esses plurais, afirma que "dada a confluência das formas do singular num único final -ão (diferenças no plural, como acabamos de ver), surgem muitas dúvidas no uso do plural, além de alterações que se deram através da história da língua, algumas das quais se mantêm regional ou popularmente, em geral a favor da forma plural -ões, por ser a que encerra maior número de representantes" (BECHARA, 2005: 120).

O segredo, ***, é semelhante, excetuando-se as regras seculares, ao da ortografia: envolver-se bastante com as palavras, através do hábito da leitura e da escrita, ou seja, alimentar continuamente nossa memória visual das palavras. O que as gramáticas escolares fazem é listar os plurais de substantivos terminados em -ão tônico em três categorias, tendo o aluno de se virar para decorá-los. Feio, isso. Não achas?

Abraço.

Até outros tópicos.

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.