terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Crônica: O patético caso de engasgo.

O patético caso de engasgo

Gustavo Henrique S. A. Luna

a01     Há meses a campainha desta casa pifou. Era uma daquelas bem vagabundas que sequer se ligam à rede elétrica, funcionando à pilha mesmo. Desde então, atender a quem quer que nos venha visitar ficou um pouquinho complicado. Ninguém escuta quem bate. O vestíbulo da casa é extenso e, como fica todo o mundo socado em seus quartos, há sempre aquela apreensão, ao mínimo ruído metálico, de que estejam batendo no portão. Derrubam um caneco pela área do alpendre e já tem gente saindo do quarto e gritando que há alguém à porta. Um dia desses, em rara e felizmente efêmera ocasião, uma araponga resolveu figurar próximo ao rio, perto de casa. Esse episódio foi um inferno e, por infeliz coincidência, houve visitas, evidentemente não atendidas. Todo o mundo se conformara. 
    — “É a droga da ave!”.
    Hoje mesmo fui surpreendido pensando num blefe. Alguém realmente batia. Talvez por polidez, fazia com suavidade fora do comum, como se temesse danificar a estrutura metálica. Achei que fosse qualquer outra coisa, exceto alguém no portão. A apreensão me fez verificar. Era uma senhorinha com um cachorrinho nos braços. Um cãozinho castanho, de pelagem rala, da raça Pinscher. Ela, com os olhos molhados, me perguntava se o meu avô estava. Referia-se a meu pai. Antes que fosse chamá-lo, ela passou a explicar que havia um cão engasgado com um osso, mas não me disse assim, na lata. Foi uma novela para esclarecer a situação. A fala atrapalhada dava a entender que o cão em apuros não fosse o que ela trazia consigo. Enrolava, se confundia, tentava retomar o raciocínio, mas voltava a se atrapalhar. “O meu sobrinho saiu… Ele ‘tá engasgado… Eu ‘tou sozinha, e ele ‘tá demorando demais. O pobrezinho vai morrer. É porque tem um cachorrinho…”. Desse modo começou a contar a história. De imediato, antes de ela enredar o caso do animal, interrompi e perguntei onde estava o sobrinho, pensando que fosse ele quem corria risco de vida. A referência distante ao cachorro me acerou um tantinho de impaciência.
    — “E onde está o cão, minha senhora?”.
    — “É este aqui.”
    E o animal imóvel, com os olhos arregalados, quase sem evidenciar respiração. Havia me dito que não conseguia retirar o osso sozinha. A moribundez no olhar do bicho me chamava a atenção. Pedi que ela segurasse as patas e o tronco, enquanto me arriscava a retirar osso. Deu certo. E, no mesmo instante, a resposta de vida meio insólita: o animal se agitou, escapuliu dos braços da velha, saiu correndo, latindo, como se nada lhe houvesse acontecido.
    — “E a senhora é muito apegada a ele?”.
    — “Não muito. Meu irmão comprou hoje e deu de presente a Juninho.”.
    Fui então saber se ela não queria entrar e tomar uma água para tentar se acalmar um pouco. Os olhos molhados e meio avermelhados, de quem já chorou tudo que tinha de chorar.
    — “E por que a senhora está chorando?”.
    Franziu a testa. Demorou a responder, repetindo o copo d’água. Bebia com sofreguidão. Mas a feição era de placidez.
    — “Não ‘tou chorando, meu filho. É conjuntivite.”.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Crônica: A dor de cabeça dos pais.

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A dor de cabeça dos pais

Gustavo Henrique S. A. Luna

    Pra ser sincero, digo, sem vergonha alguma, que não sou dado a escrever sobre memórias. Confesso: não tenho jeito pra isso. Muito menos quando as memórias são alheias. Hoje papai já não costuma me contar as suas histórias, como fazia quando eu era bem menino. Talvez seja a minha idade a razão do desinteresse dele pelo relato de suas aventuras de infância no Brejo Grande. É possível que ele pense que elas já não me interessem com a mesma força de antigamente, quando nós nos sentávamos na calçada de nossa antiga casa, na São Francisco, debaixo duma acácia, na boca da noite, e ele traçava suas peripécias de cabrinha do buchão. Naquele tempo, no tempo da acácia, notícia séria ou interessante, pra mim, não vinha do telejornal, vinha da resposta de papai à minha pergunta diária: “E aí, pai? Quais são as novidades?”. Mesmo que não houvesse novidade alguma, ele sempre dava um jeito, arrumava algo novo pra me contar. Era como meu velho fechava o meu dia com chave de ouro, com um momento terno de cumplicidade. Agora eu me sinto um traidor, partilhando com vocês aquilo que me segredava de modo tão entusiasmado.
    Ele tem muitas histórias, e algumas tantas são bem engraçadas. Aliás, ele todo, até hoje, tem umas atitudes que saem do tom e fazem os próximos rirem quando lhas conto. Outro dia, janelando de madrugada, quase no primeiro canto do galo, vi o velho pedalando, numa calói vermelha, barra circular, com toda a intensidade meninil (de pau, como diz bonitamente a mocidade), pra cima e pra baixo, dando voltas na quadra e chamando a atenção dos cães da vizinhança. Foi o dia em que deu uma de baderneiro feliz, acordando os nossos ex-vizinhos da Padre Ibiapina. “Pai, Dô quer ir pra casa. Devolve logo essa bicicleta e vem dormir!”, disse, invertendo os papéis. Ao que o ciclista da melhor idade respondeu: “Quer nada. Ele ainda ‘tá é no bar de Toinho, jogando sinuca e embicando umas lapadas.”. Parecia menino, arrumando desculpa pra dar mais uma volta no quarteirão.
    Outra vez bateu boca com os membros da Jovem Crato por conta da zoada que fazia a torcida (des)organizada, num barzinho enconstado na casa da Pe. Ibiapina. Era o aquecimento deles, antes do jogo. Cantavam o hino, soltavam fogos e reproduziam música no volume máximo, imagino, que podem suportar os amplificadores de som que se engastam nos carros. Do copiá, gritou a pior ofensa que poderia ser proferida a um grupo de torcedores fanáticos: “Tomara que o Crato perca!”. Daí levou em troca uma saraivada de vaias, quase em uníssono, não fosse um sujeito mais escroto ter gritado de volta: “Cala a boca, Dedé!”. Pronto, foi o suficiente para que ele ligasse pro Ronda, que chegou, com muito atraso, e encontrou o canto mais limpo. Como se diz no jargão policial, todos já se haviam evadido do local do crime. Não havia evidências de nada, e o assunto se encerrou ali. Ficou por isso mesmo.
    Mas e as peripécias da infância? Me desviei porque o homem tem é história. Da adultidade tem coisas tão gravemente engraçadas quanto as da meninice. Meu pai é o mais novo dos homens, de uma prole enorme. Quem o conhece hoje certamente vai duvidar, mas eu ratifico: ele é mais novo do que tio Zequinha, aquele que mantinha a farmácia Santa Inez, ali na Bárbara de Alencar. Se o meu tio ler esta crônica, ele vai praguejar dizendo o contrário. Pois eu já brinco afirmando que a fuselagem de papai é que está um pouco avariada, certamente pelos excessos da vida. Deixando de lado os detalhes etários e voltando à infância do velho, todos me dizem que, justo por ser o caçula, sempre foi muito mimado. É provável que seu gênio de traquinas tenha como causa esses mimos todos. Conta-se que, em dada ocasião, não se sabe bem o motivo, ele tenha mijado dentro das cabaças com que os trabalhadores de meu avô bebiam água durante o almoço. Imagine a presepada e a pisa que não deve ter levado de vovô Mundico.
   Outra história diz respeito a um xodó de Roque, um ave linda com que fora presenteado pouco tempo antes de meu pai ter posto seu olhar de guerra pra cima do bicho. Era um pavão robusto, volumoso, que Roque fazia questão de mostrar a qualquer vivente que pisasse em sua casa. Puxava o cabra pro terreiro e dizia: “Olha ali, homem, que coisa mais linda!”. Diz-se até que a devoção era tanta, que ele chegava a conversar com o animal. Desmotivadamente agiu de novo o endiabrado. Afinal, menino ruim não precisa de motivo pra fazer diabrura. Numa andaça, à tardinha, escutou o grito da ave no terreiro do homem e, talvez já cansado de matar lagartixa, resolveu uma investida mais ousada: puxou o bodoque e mirou, já bem perto do cercado. Acertou a pedra no quengo do bicho, que saracoteou desesperado, com seus gritos de socorro. O que tinha de volume e de robustez, tinha de vigor. Não morreu. Cegou.
    E mais: inventou de ingressar no cargo de empresário mirim de luta livre, financiando brigas as mais violentas entre os amigos de infância. Como o que não faltava na casa grande de vovô Mundico era rapadura, por conta do canavial e do engenho, fazia desse quitute o prêmio para o vencedor de cada briga. O que não faltava atrás de meu pai era menino querendo trocar uns tabefes por uma banda de rapadura. E assim ele ia organizando os embates: hoje fulano luta com sicrano, e o outro ali com beltrano… Veja bem, camarada: meu pai, ainda menino, já era visionário! Foi o primeiro a investir pesado na prática de luta livre, já no meio infantil. Muito antes de Dana White pensar em existir, nos idos de 50, já estava lá meu velho fazendo uns cabrinhas caírem no cacete por uma banda de rapadura. Fez isso por um tempinho, até vovô Mundico descobrir a marmota e quase lhe torar o espinhaço de tanta lapada com cipó de embira.

Crônica: Se correr, é pior!

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Se correr, é pior!

Gustavo Henrique S. A. Luna

    No caso, era uma chinelada nas canelas, uma "havaianada" no meio do espinhaço, uma "cinturãozada" com o "plus" de uma fivela da grossura de um dedo mindinho.
    Uma história rapidinha: quando "menino-véi-do-buchão", tinha atirado uma tigela de gelatina de morango em Niele, lambuzando a camisola que minha irmã usava. Ora, ela, muito mais velha que eu, partiu na carreira; eu, entanto, saí batendo os calcanhares na bunda. Enfim, ela não me alcançou. E também saiu dizendo que, se eu corresse, seria pior. Como estava em vantagem na carreira, não tive dúvida alguma, continuei ligeiro em direção ao oitão dianteiro da casa. Lembro, no entanto, que a corrida não havia sido de todo fácil. Havia uma série de obstáculos. Como me havia programado mal, tomei o trajeto errado, o corredor entre o linde interno da casa e o oitão da lateral esquerda, que servia de canil para o velho capitão Bubu (que Deus o tenha bem no Céu dos Cachorros!) e onde também havia fincado morada um outro ser, bem menos barulhento do que o nosso cão patrulheiro, um mamoeiro macho que, não sei como, resistia incólume às unhadas diárias do cão. Nessa curta distância, pouco menos de dez metros, havia duas muretas de concreto, as duas entradas para o canil. Havia portinholas, mas, com a pressa com que vinha, elas não me ajudaram muito. Saltei (Deus sabe como o fiz), sem perder o pique, a primeira mureta, dei com os peitos no tronco do mamoeiro e, já na segunda mureta, ralei a perna na parte de cima da portinhola de metal. A corrida com obstáculos não acabaria na travessia da morada do velho Bubu. Quando tomei a direita, já com o intuito de saltar o oitão da frente e me ver livre de uma "cinturãozada" de Niele, que então espumava de chateação, acabei passando pelo copiá, onde havia um viveiro, quatro cadeiras e uma mesa de centro. Relembrando isso, ainda digo que as mães planejam o ambiente com o intuito de que os filhos se machuquem. Bom, lembro que dei com o mindinho na quina da mesa de centro. O medo da "cinturãozada" foi maior do que qualquer esboço de careta ou do que a expressão de palavrinhas sujas inspiradas pela dor, que tardou, mas veio. Saindo do copiá, veio a redenção: com dois ou três pulos, da parte mais alta do corrimão esquerdo da escadaria, me enganchei num galho velho da quixabeira (ah! a quixabeira! tempo bom de meninice) e daí me pendurei em cima do muro. Pronto! Minha homérica aventura de infante estava concluída. Os detalhes finais talvez incluam alguma zombaria que prestei, ainda em cima do muro, orgulhoso de minha façanha, à irmã, que bufava de raiva. Tinha a certeza de que a "falta-de-vergonha" [que bem compreenda o leitor, neste momento, o que quero dizer com essa "falta"], típica da meninice, não pertencia mais a minha irmã, no vestíbulo da adultidade, e que, por isso mesmo, teria sido impedida pela vergonha de se expor aos olhos dos vizinhos ao correr atrás de um menino, como se também fosse uma meninona. Ledo engano: era uma meninona, sim! Uma meninona que correu atrás de um menino, mas dentro de casa. Essa foi a grande diferença.
    Bom, a verdade é que saltei, atingindo o calçamento da Rua Pe. Ibiapina, em Crato. Uma liberdade que só pode ser experimentada por quem já extraiu o máximo da infância.
    Depois veio a dor no mindinho torto, excruciante...

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Crônica: Bicho-do-mato.

Bicho-do-mato

Gustavo Henrique S. A. Luna

p04     Sou um bicho-do-mato. Agora sei que sou. Depois de tanto teimar que não, percebo que o que mais faço é assumir a postura de um bicho-do-mato. Seja na saída desazada, em que a conversa não se faz fluida, em desarmonia com o assunto discutido pelos demais que me acompanham, seja no modo acabrunhado como cumprimento os outros, como economizo no jeito de expor afabilidade. Costumava me chamar assim um tio quando, ainda muito novo, com meus seis ou sete anos, em meio a uma roda de parentes, sempre muito barulhentos e numerosos, me expunha, por livre e espontânea pressão dos pais. “Ei, bicho-do-mato! Vem cá!”, e me puxava e me punha no colo, com a simpatia de homem falante, piadista e bom.
    Era todo o cuidado que tinha com o desconhecido, com o inesperado, com o exagero dos ânimos. Era uma gente que ria demais, que ria de tudo, e eu sempre muito sério, sem entender muito bem de onde vinha toda a graça. Um menino, de seis anos, e sério. Quinha era que dizia a Dedé: “Esse teu menino parece um velho. Vi ele nesse instante. Passou, sem camisa e descalço, com a testa franzida, rumo à bodega de Seu Chico. Parecia um hominho.”. Essa seriedade era só de fachada. Ia danar a comprar picolé de limão, fiado, na conta de meu pai. Era um estrago que lhe fazia durante quase todas as tardes de futebol trave-fechada, no calçamento da rua onde vivi parte de minha infância. A rua era a São Francisco, aqui em Crato mesmo. Nesta cidade, em Juazeiro e em Barbalha, além de hospital, tem muita rua com nome de santo: é São Pedro, São Paulo, Santo Antônio etc. E seguia correndo com os dedos grudentos, pés descalços, tomando posição nos embates acalorados desses fubebóis de bico de pedra. Mas era um bicho-do-mato seletivo: com os comparsas da infância compartilhada, ficava à vontade para um rachinha, para as conversas leveiras, regadas a piadas e histórias de sacanagem que os mais velhos contavam; para uma gente diferente, efusiva demais, era a personificação da desconfiança, era o não-saber-o-que-dizer.
    Numa dessas, estava com meu pai, fazendo não sei o quê, talvez lhe aproveitando a companhia para pedir alguma besteira pra comer, na bodega do finado Chico Henrique, homem bom e comerciante ainda melhor. O pai jogava baralho com os camaradas, e eu ficava por perto, de olho no carteado, acerando a minha intenção pidona, até que lhe saísse a frase incomodada: “Que é que tu quer, menino?!”. Foi justo nesse dia que tive de deixar de lado o incômodo do encabulamento, com o dever da palavra, para delatar um criminoso. Tarefa das mais árduas, já que o meliante era barra-pesada e estaria, naquela ocasião, furtando ao velho Chico, querido por todos daquelas bandas. Era um frangote, recém-ingresso na adolescência, escondido debaixo do balcão da bodega, descamisado e com o calção verde cintilante cheio de pratas e de cédulas. Primeiro, a intimidação quando vi aqueles dois olhos ameaçadores, se arreminando por minha afronta de tê-los arrostado; depois, o indicador em riste, no meio do rosto que se coadunava com o negrume debaixo do balcão, pedindo silêncio, aliás, exigindo, sob a ameaça de me fazer qualquer mal posterior. E a ameaça era real: ele me apontou e, em seguida, bateu o punho cerrado na mão espalmada, como quem diz: “Eu te pego, seu bostinha!”. Sabia bem quem eu era e onde costumava andar e brincar. Apesar da convicção que assumira, planejei bem como haveria de entregar o criminoso. Tinha de delatar o filho-de-uma-égua de um jeito ou de outro, mas não podia ser assim, de cara, até porque, em se sabendo notado, à primeira atitude de delação que esboçasse, ele teria sucesso em fugir pela saída mais próxima da bodega, sem ser reconhecido, ligeiro feito coice de bacorinho.
    Não tardaria e meu pai teria de deixar o carteado, os amigos e a bodega pra levar o pão do jantar. Esperei então que isso acontecesse. Fui saindo e, sumindo do campo de visão do moleque, entreguei a situação a meu pai, que, disfarçadamente, ou melhor, que, escrotamente, voltou à bodega, fincou pé em frente à portinhola do balcão e disse a Seu Chico: “Chico, e esse menino zambeta debaixo do balcão, quem é?”. Pronto, nisso foi desfeito o furto. Depois de uns tabefes, o menino saiu ainda aluado de tanta mãozada que levara. Ainda balbuciou, em meio aos tabefes que levava e à saraivada de nomes feios que dizia, o motivo do furto. Usaria o dinheiro para quitar uma dívida que tinha com o sorveteiro Raimundo, homem bom e de bom papo que passava quase todas as tardes na São Francisco e que era conhecido por, a bem dizer, todo o mundo do bairro. Era ele, o carrinho e a voz de sorveteiro aboiador, gritando como quem pede passagem: “Sorveteiro!”. Gritava bonitamente, como quem tangia gado.
    Mas isso tudo muda com as exigências futuras. Envelheci, mas não muito. O espírito ainda está nos trinques, como o do hominho. Quando se tem de comunicar de modo pelo menos razoável, a gente desata o nó da fala e diz o que tem de ser dito, como quem tem a difícil tarefa de apenas informar. A gente objetiva as ideias na fala, sem se deixar enganar pelo que mais poderia ser dito.
    Conversando, outra vez, com uma amiga, por telefone, ela me passou o neologismo cheio de graça e, ao mesmo tempo, temperado de sensatez: extrovertímido. Foi isso que passei a ser desde que a comunicação presta e incisiva passou a ser a regra. Hoje sou um bicho-do-mato extrovertímido.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Crônica: Dia do Forró e do Rei do Baião.

    Hoje se comemora o dia do forró, data devida ao aniversário de nascimento daquele que foi, certamente, o artista que, através da música, mais se envolveu com a popularização da cultura nordestina nas demais regiões do País, o Rei do Baião, Luiz Gonzaga. Não tenho a pretensão de acrescentar nada sobre Gonzagão; todo conhecedor, mesmo que de-vista [sic], como diz um amigo, sabe o peso da figura desse homem, que, mais do que sanfoneiro, intérprete e compositor, soube, como ninguém, ser o grande repositório musical da cultura popular nordestina. Ao lado de tantos parceiros musicais, como Humberto Teixeira, Zé Marcolino, Zé Dantas e outros tantos, o Rei contribuiu com a sacralização da figura do vaqueiro e com o registro musical das tradições. 
01     Quando interpretou “Acauã”, de Zé Dantas, decantou o que há de mais puro e representativo da seca na fauna do semi-árido, através da descrição lamuriosa da ave agoureira. Essa canção, de tão recheada de beleza e de poesia, me inspirou a escrever as minhas primeiras décimas, aos moldes do gênero popular, que têm por título e mote “A Acauã de novo ilustra/ Triste seca no sertão”, que pode ser lida neste blogue através deste linque. Quando cantou as belezas de minha cidade natal, o Crato, ou a Vila Real do Crato, como alguns conterrâneos meus gostam de chamar, encheu o peito do povo dessa cidade de orgulho, cantando o seu apreço por esta terra de clima ameno, de população acolhedora, no sopé da Chapada do Araripe. Alguns poetas, como fez Manuel Bandeira, precisam imaginar e inventar uma cidade para lhes servir de refúgio, de paraíso; já outros dizem, como fez Gonzagão, “Eu vou pro Crato!”, sem precisar imaginar, nem inventar, porque esse paraíso existe, de fato, e fica bem no Coração do Cariri, como diz o próprio Rei. “Cratinho é de Açúcar, o Cratinho é doce!”, disse Gonzaga no trecho de conversa ao final da canção. 02 Quando registrou o corriqueiro e o pitoresco da crônica sertaneja, cheia, até a tampa, de um humor inigualável, como foi o caso da canção “Samarica Parteira” (de Zé Dantas), “Dezessete e setecentos” (de Miguel Lima), “Não vendo nem troco” (com Gozaguinha), “O forró de Mané Vito” (com Zé Dantas), “Derramaram o gai” (com Zé Dantas), “Siri jogando bola” (com Zé Dantas), “Lorota boa” (com Humberto Teixeira), “Galo Garnizé” (com Miguel Lima), “Lá vai pitomba!” (com Onildo Almeida), “Ovo de codorna” (de Severino Ramos), “Capim novo” (de José Clementino, recentemente falecido), “Buraco de tatu” (de Jadir Ambrósio e Jair Silva), “Faz força, Zé” (de Rosil Cavalcante), “O tocador quer beber” (com Carlos Diniz), “Casamento improvisado” (de Rui Morais e Silva) etc., Gonzaga resgatou nessas canções o trocadilho, o sarro, a gozação, através da figura do sujeito preguiçoso, que não quer trabalhar; da metáfora do buraco de tatu; do valentão que acaba o samba no forró de Mané Vito; do pitoresco e do surrealista na imagem do siri jogando bola; da altercação financeira sobre o troco que deveria ser de 16.700 réis; do registro duma carreira desaforada que tomou, em riba de uma bestinha, um dos trabalhadores do Capitão Balbino, atrás de Samarica, uma parteira da região; da descrição supreendente da paixão por uma égua; do festival hilário de lorotas muito criativas; do cabo que se deu ao galo da vizinha por ele ter-lhe beliscado o pé; dos efeitos revigorantes (dizem) do ovo de codorna; do tratamento inovador com “capim novo” para o amigo velho que já está enviesando o serviço, sem energias; da engraçadíssima narrativa de um sujeito medroso que não soube conquistar a donzela e mandou outro indivíduo, mais esperto, fazer o serviço; e por aí vai. 03 O mundo musical do Rei do Baião é um universo que não cabe em si mesmo. Quando musicou as redondilhas menores de Patativa, do poema “A Triste Partida”, não só contribuiu com a popularização da temática do sertanejo flagelado, que deixa seu torrão em busca de vida melhor em outras terras, como também ajudou a levar às demais regiões do País o nome dessa ave candora que tanto nos orgulha com poesia simples, pura e bela. Quando cantou o nosso conterrâneo ilustre Aderaldo Ferreira de Araújo, o Cego Aderaldo, imortalizando o trava-língua “Quem a paca cara compra paca cara pagará”, criado por Firmino Teixeira do Amaral, o inventor, por sinal, desse gênero temático de poesia (veja este linque), novamente deu margem ao bate-papo tão bonito e produtivo entre música e literatura de cordel. Gonzagão registrou em música, como ninguém jamais havia feito, a fauna sertaneja, principalmente as aves, e a significação que elas têm para o homem do sertão. Histórias belíssimas, de uma riqueza ímpar, são contadas em canções como “Assum Preto”, talvez uma das mais lindas de Luiz e de Humberto Teixeira; “Sabiá” e “Acauã”, ambas compostas com Zé Dantas; a mais famosa da dupla Humberto e Gonzagão, “Asa Branca”; “Fogo-pagou”; “Pássaro Carão” e por aí vai.
04     Hoje, de manhãzinha, assistindo a uma reportagem sobre o dia do forró, feita por emissora de tevê cearense, pude conferir os depoimentos de alguns músicos sobre a importância da canção de Gonzaga, e um deles, Waldonys, o Garoto Atrevido, como o Rei lhe chamava, disse uma verdade que revela uma das características musicais mais importantes de Gonzagão, um traço que só pode ser encerrado por verdadeiros gênios da música: a canção de Gonzaga é atemporal! Você não escuta um sujeito dizer, ao ouvir uma música sua: “Eita, que essa é das antigas!”. Isso não existe quando o assunto é o Rei do Baião, um artista atualíssimo, principalmente porque cantou um tema imarcescível, que é o tema sertanejo, um assunto perene no inconsciente popular de todo e qualquer nordestino. E, enquanto esse sentimento nordestino, popular, estiver vivo, pulsando dentro do nosso peito, a música de Gonzagão viverá!

Crônica: A origem da palavra “forró”.

E sobre a origem da palavra forró? Existem teorias mirabolantes que são, diariamente, difundidas nesses tempos de “livre comunicação”. Confundiram Jesus com Genésio e andam achando que não existe responsabilidade com o que é escrito quando o assunto é Internet.

“As palavras também têm seu romance de vida.” A. Guilherme Grings, A história natural no romance da etimologia.

   Não sei se já escrevi sobre o assunto nestas searas, mas não me furto a relembrar que nada tem que ver a palavra forró com a expressão inglesa for all. Isso é invenção de quem tem preguiça de pesquisar e vê nessa estratégia um jeito muito cômodo de falsear a etimologia. Admito que não deixa de ser engenhosa a associação. Afinal de contas, existe o contexto histórico para fortalecer a carcaça de uma tese que, em verdade, tem um chassi muito frágil. Na versão popular, conta-se que a palavra surgiu da leitura estropiada da expressão inglesa, com que os oficiais da base aérea estadunidense de Natal indicavam que a festa, o forró, era aberta para todos. Em outra versão, igualmente popular, diz-se que quem indicava a festa eram os engenheiros ferroviários da famosa companhia inglesa Great Western, a famosíssima "Gretueste", palavra assim pronunciada pelo matuto de um dos causos do nosso Jessier Quirino. Mas a etimologia popular, engenhosa, fruto do esfervilhamento de criatividade da mente do povo, como registram os livros de Linguística, é isso mesmo: é inventiva demais e, no mais das vezes, falsa. Então, se você ouvir uma história muito bem urdida, que soa muito engenhosa e verdadeira, seja cuidadoso, pare e vá pesquisar nos etimologistas mais sérios, que, antes de tudo, são filólogos, historiadores da língua. Desse modo, é quase certo que sejam etimologias puramente populares e mentirosas. O fato é que, infelizmente, a história da maioria das palavras da Língua Portuguesa é meio sem graça, sem a cor, o cheiro e o sabor que só o povo sabe e pode lhe dar. A gente lê as etimologias populares como quem se deleita com uma crônica humorística, como quem se encanta com os contos populares registrados por Câmara Cascudo. A gente lê a história falsa de um vida verdadeira, pungente, que têm as palavras que o povo costuma usar, e lamenta por não serem esses registros, de domínio público, a sua verdadeira biografia, como se fossem contos do fantástico.

“Como a etimologia ensina coisas — é como se a origem das palavras contivesse toda a sabedoria do mundo.” M. Julieta Drummond de Andrade, O valor da vida.

   E a etimologia correta? Bom, forró formou-se da redução de forrobodó, uma palavra muito mais antiga do que qualquer base aérea estadunidense ou do que qualquer uma das linhas férreas da Great Western. O étimo data do período colonial e significa baile popular ou mesmo confusão. Hoje em dia, o povo costuma, com mais frequência, fazer referência, usando a palavra forró, à música que é tocada no baile, numa espécie de metonímia que se foi construindo com o tempo. E, com o apagamento da etimologia, legada ao limbo da memória dos falantes, deu-se a catacrese. Os gêneros musicais sertanejos chamados baião e xote é que são tocados no baile chamado forró, ou forrobodó.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Poesia: A Aquarela da Vida e as Cores que a Vida Tem.

    O que uma prova de pneumologia não faz com o sujeito? Revisando, na véspera, de madrugada, após feitas algumas sextilhas mnemônicas sobre as condutas para TEP, DPOC, pneumonias etc., fui tomado por uma vontade doida de escrever à toa. Como quem psicografa, escrevi dezoito sextilhas bem simples. E fiz num intervalo de tempo que não é bem meu: meia hora, estourando. Digo logo aos foristas amigos, confrades das discussões gramaticais, que o mais que fiz foi respeitar a expressão popular dos versos e que, quando der de escrever pés aos moldes das regras de nossa Gramática, a saírem com alguma graça, também não me furtarei de com eles semear esta seara. 
    Falando, ao telefone, com um bom e velho amigo, que leu os versos com exclusividade, disse-lhe que se me surgiram na mente após um esfervilhamento de juízo que me atacou numa madrugada dessas, após uma crise de tédio. Ele perguntou-me do título… Uma metáfora das coisas bonitas da vida, do (des)controle do homem sobre seu destino, da diferença dos amores mundano e divino, do prumo que dá Nosso Senhor a nossas mãos, para que se possa desenhar, com verdade e beleza, a aquarela da vida.

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A Aquarela da Vida 
E as Cores que a Vida Tem.

(Gustavo Henrique S. A. Luna)

Quem na vida padeceu
Por amor correspondido
Da vida não entendeu
O belo e real sentido,
Pois no amor só perdeu
O que tanto é perseguido.

Se lamenta tendo amor,
Verdadeiro amor não tem.
Um esboço pode ter,
Que o verdadeiro só tem
Aquele que vê na vida
A grandeza que o amor tem.

Se o calor da união
Não satisfaz o teu peito,
O problema não é o calor.
É o modo como ele é feito,
Porque calor verdadeiro
Endoida qualquer sujeito.

Tragante feito maré
É o sorriso feminino.
Te puxa ou te derruba.
Não depende do destino.
Depende de como tratas
O gênero feminino.

Tem um cabra que se mete
E dana a falar besteira,
Dizendo que o correto
É amor de gafieira.
Primeiro, ofende o amor;
Depois, a vida inteira.

O amor está em tudo.
Na poesia, também.
Mas tem gente que se engana,
Achando que ele tem
Um tal código secreto
Pra amar e querer bem.

Pra amar não tem segredo.
Basta com o Amor nascer,
Vivenciando em família,
O seu amadurecer.
Depois, pra compartilhar,
Nenhum esforço fazer.

Assim se vive com Deus
Agraciando o teu peito,
Com o amor verdadeiro,
Que é todo teu de direito,
Desde o romper da vida
Até parar o teu peito.

A velhice pode vir,
Mas o amor não se vai.
Parece que é divino.
Deve ser coisa do Pai.
O corpo pode esquecer
O que da alma não sai.

O amor mora na alma.
Dela faz sua residência,
Alimentando o espírito,
Recheando a consciência,
De pensamentos bonitos
Da Divina Providência.

Tudo isso pinta a vida
Com as cores que o amor tem.
Numa aquarela bonita,
Do pincel o vai-e-vem
Vai delineando os traços,
As curvas que a vida tem.

As linhas são tortuosas,
Mas o conjunto é perfeito.
O movimento da vida,
Brotando dentro do peito,
Se estica e percorre o braço,
E, com o pincel, ele é feito.

Cada traço é uma etapa
Em que se confunde a vida
Com a própria história do amor
Numa aquarela florida.
Se puxa um traço mais longo,
Parece a vida comprida.

Quando a vida é recheada
Com os tons que dá o amor,
Parece que ganha vida
A obra que fez o pintor.
E se a obra é perfeita,
O artista é Nosso Senhor.

Se me toca a aquarela
Depois que ela fica pronta.
Mais me toca é o processo,
Quando vejo, ponta a ponta.
Primeiro, o romper da vida
Do pincel tocando a ponta.

O entremeio é bonito.
Nele a gente faz nascer,
Se o amor é permitido,
Ou então deixa morrer.
Mas, se é compartilhado,
Faz a vida florescer.

A vida é esta pintura,
Obra de todo sujeito,
Que é dono do pincel,
Mas que não pensa direito,
Achando que cada traço
Vem direto de seu peito.

Só Deus apruma o teu punho,
Nessa arte de pintar.
É coisa que se aprende,
Se deixar Deus ensinar,
E, se não deixa, sai torto,
Não aprende a desenhar.

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.