sábado, 4 de agosto de 2012

Carta a amigo residente na Bolívia: Seleção de poesias do escritor barbalhense Mozart Cardoso de Alencar.

Amigo ***:

    Escrevo-lhe esta mensagem para apresentar-lhe um dos poetas caririenses mais talentosos e criativos que já li, mas igualmente subestimado por tratar poesia com honestidade e sinceridade tamanhas, que chegam a agredir os fracos de espírito que não compreendem a essência da lira do vate barbalhense. Mais abaixo lhe explico por que a tantos não agradam os versos de Mozart. Lançou apenas um livro, não tão extenso, mas recheado de inspiração, bom-humor, nostalgia, romantismo e acidez. Caiu-lhe feito luva o título "Doce de Pimenta", preparado num caldeirão popular em que os ingredientes citados se misturam na dose certa para que sobeje o conjunto, de modo que todos, absolutamente todos os tipos de leitores, possam aproveitar bem a poesia acre-doce dessa personalidade da Terra dos Verdes Canaviais.

    Nasceu Mozart Cardoso de Alencar em 28 de maio de 1903, em Barbalha, cidade que também lhe serviu de inspiração para as estrofes mais saudosas do livro. É o mais velho varão de família formada por nove filhos. Iniciou seus estudos ainda em Barbalha, na Escola Pública Municipal da Professora Josefa Sobreira, inesquecível, segundo o escritor, pelos dolorosos bolos da palmatória de pau-d'arco, de execranda memória. Em seguida, rumou ao Seminário São José de Crato, onde também estudaram figuras ilustres, como o poeta, especialista em sonetos, crítico literário, ensaísta, lente da UFC, doutor em Literatura Portuguesa, José Linhares Filho, e, décadas depois, um jovem desordeiro, pândego, cavalo-do-cão, chamado José Alencar Luna, pai do degas que lhe escreve. Passados dois anos nessa Escola de Padres, seguiu para Fortaleza, a fim de terminar seus estudos normais no Liceu do Ceará e concluir os clássicos doze preparatórios do curso de humanidades, então pertencentes ao currículo do Ensino Básico. Foi durante a estada do barbalhense na capital do estado que surgiram os primeiros versos.

    No ano de 25 embarcou num vapor que o foi deixar nas searas soteropolitanas, a fim de submeter-se ao concurso vestibular para Medicina. Afirma o vate que foi aprovado no exame com notas plenas, verificando em seguida sua inscrição na primeira faculdade de Medicina do País.

    Formou-se médico, no entanto, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em dezembro de 1930. A transferência ocorreu quando o poeta era quartanista do curso, tempo por ele lembrado com muito entusiasmo; foram "quatro anos de intensa vibração noturna, abraçado ao violão, nos arraiais do amor e da poesia". Após a colação de grau, resolveu permanecer na cidade para cumprir cursos de especialidades médicas. Conta que foi a Cidade Maravilhosa que lhe proporcionou os mais fáceis e arrebatados amores. Lá estreou um arremedo de vida conjugal, felizmente sem os frutos do amor, apesar da inexistência, ainda, dos contraceptivos. Também foi no Rio que o poeta se abasteceu com as melhores penas da prosa e da poesia nacional. Conta da boemia regrada que seguia: não fumava, sempre abstêmio (papo de médico que lança livro? [rs.]), alheio aos prostíbulos. Afirmava ser cioso de sua saúde.

    Foi em 31 que Mozart veio a Juazeiro do Norte, "a que voluntariamente se escravizou, nos braços da felicidade que procurava". Conta com orgulho que foi o último médico do Reverendíssimo Padre Cícero Romão Batista. Casou-se em 45, aos 42 anos de idade, com Odete Matos de Alencar, agregando à nova família dois frutos de "irresistível amor" dos seus vinte e oito anos de idade. Foram os únicos de seus oito filhos que não chegaram ao ensino superior. Do matrimônio foram seis rebentos: dois médicos, um odontólogo, um administrador de empresas, um engenheiro agrônomo e uma moça bacharel em Letras. Suspira o poeta: "Todos casados e no silêncio das noites miliciando um exército de netos que fazem a 'segurança' da minha alegria de viver".

    Após firmar morada em Juazeiro, passou a nutrir verdadeiro amor pela cidade. Nos trechos finais da carta que o poeta escreveu a Padre Antônio Vieira, declara que "Juazeiro do Norte, metrópole do Cariri estuante de seiva e de vida, foi realmente o espaço acolhedor em que dei maior expansão ao estro".

    Na época em que havia lançado o livro, amargava o fel da viuvez que buscava amenizar cantando em versos a saudade da esposa querida. A carta tinha tom de pedido, prontamente aceito pelo padre, que prefaciou divinamente "Doce de Pimenta".

    O mais da obra virá às suas mãos em breve, meu amigo. Tratarei de fotocopiar todo o livro, encadernar e lhe oferecer, para que o leia às colheradas, como que interrompidas por talagadas da melhor cachaça cearense.

    Como lhe afirmara antes, a obra é dividida, não de forma organizada e explícita, em três partes: a porção lírica, a erótica e a satírica. Por conter palavrões e termos chulos em diversas partes da obra, a maioria do público recebeu mal o livro. A segunda edição, com o poderoso prefácio do padre cantado por Gonzaga, traz alguns esclarecimentos do próprio prefaciador sobre a linguagem do poeta e sobre conceitos  falsamente moralistas, maçantes nas mentes dos membros das nobres castas caririenses.

    Seguem abaixo versos seletos da obra, escolhidos por mim.

Atenciosamente,
Gustavo Henrique Silva Alencar Luna

 

 

 

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(fonte: ALENCAR, Mozart Cardoso de. Doce de Pimenta. 2.ª ed. Brasília: edição própria, 1994. 293 págs.)

Poesia: Aos andarilhos da viola.

    Três décimas dedicadas aos cantadores andarilhos, que semeam sua arte por onde quer que passem.

Aos andarilhos da viola

(Gustavo Henrique S. A. Luna)

Andarilhos da viola,
Que ao povo emociona,
Qual Gonzaga na sanfona,
Fazem também sua escola.
Não cantam pedindo esmola,
Pois Repente tem valor
Do Parnaso é Professor
Seu verso nunca decora
As rimas saem na hora,
E é bom improvisador.

Não existe pé-quebrado
Que não note o cantador.
Com o raciocínio em furor,
Aponta ao pobre coitado,
Diz logo que está errado
O verso que concebeu.
Mesmo sendo amigo seu,
O cantador não perdoa,
Ainda que muito doa
A falha que cometeu.

É nobre nefelibata
Do mundo da poesia.
Tosa o verso e amacia,
Com muito amor ele o trata.
A poesia lhe é grata,
A granel lhe dá beleza
Que extrai da natureza
E muito que de repente
Um salto mortal da mente
Da boca sai com presteza.

Poesia: Os versos de Catota (I)

    Eis aqui breve homenagem a um dos mais talentosos cantadores pernambucanos, José Catota, natural de São José de Egito (PE), o berço da poesia, no Pajeú das Flores, donde saíram outros tantos mestres da arte da cantoria, como a trindade dos Batistas, Rogaciano Leite, Antonio Marinho, Jó Patriota etc. Segue abaixo pequeno trecho da apresentação do poeta Catota feita pela Voz do Uirapuru, Otacílio Batista:

    “No aniversário de oitenta anos de sua genitora, Catôta cantava com seu irmão Cícero, num ambiente do mais puro aconchego familiar. As auras benfazejas da inspiração favoreceram-no, com a força inelutável do improviso. Qual o mais belo? A doçura dos versos partidos dos corações filiais, ou a candura da atenção materna ouvindo-os atentamente? É impossível sabermos! Em homenagem àquela sagrada efeméride, foram colhidas estas primorosas Sextilhas de Catôta:

‘Minha mãe é parecida
Com uma pombinha mansa,
Já cansada da viagem,
Em toda sombra descansa;
Depois dos oitenta anos,
Mamãe parece criança.

‘Estão vendo esta velhinha
Toda envolvida num manto,
Com os olhos rasos dágua,
Tomando banho em seu pranto?
Cantava quando eu chorava,
Hoje chora quando eu canto!

‘Quando, pra mamãe, eu canto,
Sempre, sempre me comovo;
Quando ela ri para mim,
Parece dizer ao povo:
‘Depois dos oitenta anos,
Tornei-me nova de novo!’”

(fonte: LINHARES, Francisco; BATISTA, Otacílio. Antologia Ilustrada dos Cantadores. 2.ª ed. Fortaleza: Edições UFC, 1982. 502 págs.)

A imagem de cabeçalho é montagem de algumas obras do pintor belga Jos de Mey.